Da ditadura à eleição de 2018, Bolsonaro mente ao Flow Podcast

Atualizado em 9 de agosto de 2022 às 0:11
Jair Bolsonaro no Flow Podcast. Foto: Reprodução

 

Publicado originalmente na Agência aos Fatos

 

Ao Flow Podcast, nesta segunda-feira (8), o presidente Jair Bolsonaro (PL) repetiu mentiras e distorções sobre uma ampla gama de temas, do golpe militar de 1964 à eleição de 2018. Ao contrário do que disse o mandatário, cópias do Diário do Congresso Nacional da sessão de 2 de abril de 1964 não foram incineradas após decisão de 2013. Ele também afirmou que se elegeu presidente sem usar dinheiro do Fundo Eleitoral — o que é falso.

A participação de Bolsonaro foi anunciada nas redes sociais horas antes, pela manhã, nos perfis do Flow — que soma 3,97 milhões de inscritos no YouTube e 1,7 milhão de seguidores no Instagram, além de centenas de milhares no Facebook e no Twitter. A conversa foi conduzida por Igor 3K, fundador do podcast ao lado de Monark, ex-sócio que deixou o programa após defender a existência de um partido nazista no Brasil.

Confira a seguir o que checamos.

FALSO

Eu tinha uma cópia do Diário do Congresso. Tá comigo até hoje. O resto foi incinerado ou pintado de negrito.

A declaração de Bolsonaro é FALSA. O presidente fazia referência à sessão legislativa de 1964 que declarou a vacância da Presidência da República, então ocupada por João Goulart. Em 2013, a sessão foi anulada pelo Congresso, sob a justificativa de que a premissa era ilegal: Goulart havia enviado um documento ao Legislativo dizendo que se encontrava no país e no exercício do cargo.

Tanto no site da Câmara como no do Senado Federal está disponível o fac-símile do Diário do Congresso Nacional da sessão de 2 de abril de 1964. O áudio da sessão também está disponível.

Em email enviado ao Aos Fatos, a Câmara dos Deputados confirmou que uma cópia física do jornal também está disponível no arquivo do Senado Federal. A resolução aprovada buscou “retirar o caráter de legalidade do golpe militar”, mas não determinou nenhuma exclusão dos registros históricos da sessão.

Durante a discussão do Projeto de Resolução do Congresso (PRN) nº 4/2013, cuja aprovação anulou a sessão de 1964, Bolsonaro pediu ao então presidente do Congresso, senador Renan Calheiros (MDB-AL), que a votação fosse nominal, pedido que foi negado. O projeto foi aprovado por votação simbólica.

“Eu não vou dizer que estou satisfeito com o que aconteceu na sessão de hoje aqui, porque eu queria votação nominal, apesar de, com toda certeza, ter apenas o meu voto lá, verde ou vermelho, mas em parte fico satisfeito — repetindo — por um Congresso Nacional e várias lideranças, inclusive vossa excelência [Calheiros], reconhecerem que um golpe que teria sido dado foi dado por este Congresso Nacional”, discursou Bolsonaro na tribuna.

FALSO

“Um partido pequeno, sete segundos de televisão, sem fundo partidário.”

Ao ser questionado sobre como chegou ao cargo de presidente, Bolsonaro engana ao dizer que não teve recursos de fundo partidário para a campanha de 2018. Partido pelo qual o presidente concorreu na última eleição, o PSL recebeu R$ 9.203.060,51 de Fundo Especial de Financiamento de Campanha, de acordo com dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Cerca de R$ 480 mil desse montante foram utilizados para executar a estratégia de atuação do PSL nas redes sociais, o que beneficiou Bolsonaro indiretamente.

Além disso, foram empregados na campanha presidencial de Bolsonaro, indiretamente, cerca de R$ 1 milhão do fundo partidário concedido ao PSL em 2018. Segundo reportagem do jornal O Globo, o então presidente da legenda, Gustavo Bebianno, contratou, por exemplo, a empresa J&J Marketing por R$ 500 mil para atuar como consultora na coordenação de campanha do então pré-candidato.

Já a AM4 Brasil foi contratada pelo PSL com dinheiro do fundo partidário por R$ 480 mil para executar a estratégia de atuação do partido nas redes sociais. A assessoria de Bolsonaro disse ao Globo que ele não teve conhecimento dos usos de recursos públicos na contratação dessas empresas.

Em fevereiro, o TSE aprovou a fusão do PSL com o DEM, dando origem ao União Brasil. Bolsonaro é filiado atualmente ao PL, que neste ano tem direito a R$ 288.519.066,50 (5,82%) da divisão do Fundo Eleitoral.

Também é falso que o presidente não teve direito a tempo de televisão na campanha. Ainda que no primeiro turno tenha tido direito a apenas oito segundos de tempo de propaganda, no segundo, Bolsonaro teve os mesmos dez minutos de seu adversário, Fernando Haddad (PT), conforme determina a Lei Eleitoral. Com variações sobre as frases, o presidente repetiu essa alegação ao menos 12 vezes desde o início do seu mandato.

FALSO

“Fui o primeiro presidente a pegar a lei de teto [de gastos].”

A declaração é FALSA. A PEC 55/2016 entrou em vigor em 2017, durante o governo Michel Temer (MDB), que exerceu o cargo durante dois anos com a lei que estabelecia o teto de gastos já em vigência. A medida determina que o Orçamento do governo federal não pode ser maior do que o do ano anterior, sendo reajustado apenas pela inflação.

FALSO

“A apuração tem que ser pública. Se é numa sala-cofre [a apuração das eleições], não é pública.”

A apuração das eleições brasileiras é, sim, pública e não é feita dentro de uma sala-cofre, como afirma o presidente. Os dados das eleições são processados por um sistema interno do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e enviados para o site de divulgação de resultados de forma automática.

A apuração dos resultados começa na urna eletrônica, que soma os votos daquela seção, emite um boletim com os dados e alimenta uma memória que será levada à Zona Eleitoral ou TRE (Tribunal Regional Eleitoral) responsável. Os resultados de cada memória são, então, enviados ao TSE para a totalização por meio de uma rede interna da Justiça Eleitoral.

Ou seja, não são servidores que somam os votos em uma sala secreta, mas um programa que soma os votos automaticamente. Vale ressaltar que os resultados divulgados podem ser conferidos nos boletins impressos pelas urnas eletrônicas após o fim da votação. Isso significa que eventuais incongruências entre o resultado oficial e o registrado pelas urnas podem ser verificadas por meio desses documentos.

A história de que os votos seriam contados em uma sala secreta tem origem em uma distorção de uma reportagem do Jornal Nacional, da Globo, de 28 de outubro de 2014. A matéria, na verdade, mostra apenas o trabalho do departamento de processamento de eleição do TSE, que monitorava o recebimento de boletins de urna. Os técnicos acompanhavam “os parâmetros de equipamentos para que o recebimento dos dados de urnas eletrônicas ocorresse sem sobressaltos”, segundo a corte.

FALSO

“Eu dou o inquérito da PF de 2018 para quem quiser. Para quem quiser. Apesar de o STF falar que ele é confidencial, não é confidencial.”

Bolsonaro se refere ao inquérito que investiga uma invasão ao sistema do TSE em 2018, cujos dados foram divulgados por ele em transmissão ao vivo em suas redes sociais no dia 4 de agosto de 2021. O presidente afirma que o documento não tinha classificação sigilosa, o que, no entanto, é desmentido pela conclusão da própria Corregedoria da Polícia Federal.

Em relatório divulgado em fevereiro de 2022, a Corregedoria afirma que, mesmo que não houvesse ordem judicial que classificasse a investigação como segredo de justiça, o inquérito “apresentava o sigilo relativo próprio dos procedimentos de investigação criminal”.

Ao STF, a Polícia Federal também disse que Bolsonaro teve atuação “direta, voluntária e consciente” ao divulgar, ao lado do deputado Filipe Barros (PL-PR), o inquérito policial. O relatório, no entanto, não indiciou Bolsonaro por crime de vazamento de dados sigilosos devido ao foro por prerrogativa de função. No dia 5 de agosto deste ano, o ministro Alexandre de Moraes negou pedido da PGR (Procuradoria-Geral da República) para arquivar o inquérito sobre os dados sigilosos.

FALSO

“Tiraram de mim o poder de conduzir essas medidas [de isolamento] na pandemia.”

O STF (Supremo Tribunal Federal) não retirou do Executivo o poder de conduzir ações para controlar a pandemia da Covid-19 no Brasil, como disse Bolsonaro. A corte entendeu, na verdade, que a União não poderia invadir as competências de municípios, de estados e do Distrito Federal. O presidente não poderia, por exemplo, derrubar medidas de isolamento social colocadas em práticas por prefeitos, mas a União não foi impedida de conduzir outras medidas de combate à Covid-19. Essa afirmação foi repetida pelo presidente ao menos 135 vezes.

“O plenário decidiu, no início da pandemia, em 2020, que União, estados, Distrito Federal e municípios têm competência concorrente na área da saúde pública para realizar ações de mitigação dos impactos do novo coronavírus. Esse entendimento foi reafirmado pelos ministros do STF em diversas ocasiões. Ou seja, conforme as decisões, é responsabilidade de todos os entes da federação adotarem medidas em benefício da população brasileira no que se refere à pandemia”, afirmou a corte em janeiro de 2021.

Em entrevista ao Aos Fatos, Cecilia Mello, especialista em direito administrativo e ex-desembargadora do TRF3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), explicou que o STF não excluiu a responsabilidade ou a atuação da União no enfrentamento da Covid-19: “Não houve qualquer suspensão de vigência da lei quanto às competências do presidente e dos órgãos federais para o combate à crise, tampouco foram eles eximidos de seus deveres e atribuições.”

FALSO

“Passamos de déficit para superávit [nas empresas estatais].”

A declaração de Jair Bolsonaro é FALSA, pois as empresas estatais têm registrado superávit desde 2016. Naquele ano, o lucro foi de R$ 4,5 bilhões (ou R$ 6,1 bilhões, em valores corrigidos pelo IPCA, indicador oficial de inflação. No anterior, último ano completo do governo de Dilma Rousseff (PT), as empresas sob controle do governo tiveram resultado negativo de R$ 32 bilhões (ou de R$ 43,4 bilhões negativos, em valores corrigidos). O resultado foi repetido em 2017 quando o resultado líquido positivo foi de R$ 25,2 bilhões (R$ 33,2 bilhões em valores corrigidos).

Em 2018, último ano do governo de Temer, o conjunto de empresas sob controle direto ou indireto do governo federal teve resultado líquido positivo de R$ 71,3 bilhões (ou R$ 90,8 bilhões, em valores corrigidos). Em 2019, primeiro ano da gestão de Bolsonaro, as estatais, juntas, deram lucro de R$ 109,1 bilhões (R$ 133,9 bilhões em valores corrigidos).

A gestão de Bolsonaro continuou a tendência de lucro crescente. O balanço anual das estatais de 2020, por exemplo, mostra que as empresas deram lucro de R$ 60,6 bilhões (R$ 71,31 bilhões, em valores corrigidos). O boletim do Ministério da Economia mostra que em 2021 o lucro saltou para R$ 187,7 bilhões (R$ 199,4 bilhões, em valores corrigidos).Os dados mais recentes do Ministério da Economia são referentes ao primeiro trimestre de 2022, quando o lucro foi de R$ 69,6 bilhões.

FALSO

“Quem tornou vaga a cadeira do João Goulart foi o Congresso Nacional.”

Quem declarou a vacância da Presidência da República no dia 2 de abril de 1964 foi o presidente do Senado e do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade, que não colocou a medida em votação pelos parlamentares. A vacância da Presidência e da Vice-presidência da República, dispositivo presente na Constituição Federal de 1946, foi declarada apesar de João Goulart ainda estar em solo brasileiro, em um movimento considerado pelos historiadores como uma forma de “conferir legalidade” ao golpe militar.

Desde aquele dia até 15 de abril, quem comandou o país foi o presidente da Câmara dos Deputados, Pascoal Ranieri Mazzilli, mas quem exerceu o poder de fato foi um grupo autodenominado “Comando Supremo da Revolução”, formado por três ministros militares: o vice-almirante Augusto Rademaker Grünewald, da Marinha; o tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo, da Aeronáutica; e o general de Exército Artur da Costa e Silva, da Guerra.

No dia 9 de abril, esse comando lançou o Ato Institucional nº 1, que estabeleceu as eleições indiretas para a Presidência da República e a cassação dos mandatos de diversos parlamentares. Humberto de Alencar Castello Branco, general de Exército, venceu as eleições indiretas e se tornou o primeiro presidente da ditadura militar.

NÃO É BEM ASSIM

“Agora, levando-se em conta o mundo todo, o Brasil é um país que menos sofreu com a pandemia.”

Dados contrariam a afirmação do presidente de que o Brasil teria sido uma das nações que menos sofreu impactos econômicos com a pandemia. Entre 2019 e 2021, o país caiu da 9ª para a 13ª posição no ranking das 15 maiores economias do mundo elaborado pela Austin Rating, agência de classificação de risco. No levantamento, divulgado pela Austin em março deste ano, o PIB brasileiro em 2021 estava em 21º lugar entre os 34 países mais ricos.

Além disso, o real teve o pior desempenho em 2020 entre as 30 moedas mais negociadas do mundo comparadas ao dólar, segundo levantamento da FGV (Fundação Getúlio Vargas). Segundo pesquisa da Economatica, a moeda foi a 12ª que mais se desvalorizou no ano de 2021. A Austin Ratings também colocou o Brasil como um dos países com maior taxa de desemprego no terceiro trimestre de 2021, em quarto lugar ante 44 países.

Os primeiros dados de 2022, entretanto, indicam recuperação: em maio, a Austin Rating colocou o real como a quarta moeda mais valorizada entre 120 analisadas. Em 2 de junho, a consultoria divulgou que o Brasil subiu para a 10ª colocação entre as 15 maiores economias do mundo, considerando o PIB do primeiro trimestre de 2022. A taxa de desocupação também sofreu recuo, acima da média do G20.

NÃO É BEM ASSIM

“O Tarcísio tem um orçamento de aproximadamente R$ 7 bilhões por ano.”

Bolsonaro se refere ao orçamento do Ministério da Infraestrutura, que foi comandado por Tarcísio de Freitas até o dia 31 de março de 2022. Desde 2019, segundo o Siop (Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento), a pasta sempre teve aprovação de gastos acima de R$ 7 bilhões, mas nem sempre esse orçamento foi efetivamente gasto por conta de contingenciamentos orçamentários.

Segundo o Siop, plataforma do Ministério da Economia, a dotação atual do Orçamento Fiscal deste ano é de R$ 14,8 bilhões, dos quais já foram empenhados R$ 8,4 bilhões. Em 2021, a dotação orçamentária inicial da pasta foi de R$ 13,1 bilhões, dos quais foram empenhados R$ 10 bilhões e pagos R$ 6,3 bilhões.

VERDADEIRO

“Você pode ver, no campo: nós aprovamos a posse estendida. Você há pouco tempo podia usar tua arma no campo dentro da tua casa. Agora você pode montar no cavalo, numa bicicleta, um carro, né, e em todo o perímetro da fazenda, você pode ter o porte de arma de fogo.”

A declaração de Bolsonaro é VERDADEIRA. Em setembro de 2019, Bolsonaro sancionou a Lei 13.870, que permite que o produtor rural circule arma por toda a sua propriedade com a arma que tenha a posse, e não apenas dentro da sede. O texto original é de autoria do senador Marcos Rogério (PL- RO), apoiador do presidente.

VERDADEIRO

“A [Simone] Tebet falou de voto impresso no passado”

É verdade que, como afirmou Bolsonaro, a senadora e presidenciável Simone Tebet (MDB-MS) já defendeu a adoção de um comprovante de voto impresso da urna eletrônica. Em julho de 2015, a emedebista votou a favor da medida.

No mesmo ano, quando a então presidente Dilma Rousseff (PT) vetou um trecho da reforma eleitoral, o que resguardava a impressão do registro de cada voto, a senadora também se pronunciou em defesa da medida.

Em 2018, Tebet justificou que a União deveria arcar com as despesas da adoção do voto impresso porque a “sociedade tem dúvidas” quanto à contagem da votação eletrônica.

“A realidade é a seguinte: a sociedade tem dúvida, principalmente quando a diferença é de poucos votos, como nas eleições para vereadores e prefeitos. Se a sociedade tem dúvida, é óbvio que é preciso haver mais transparência. Por conta disso, sabendo que a população tem dúvida, é preciso resolver essa questão”, afirmou a senadora em sessão na CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania).

A medida foi suspensa em 2018 pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e não foi implementada posteriormente. Em agosto de 2021, uma nova proposta de impressão do voto foi derrubada na Câmara dos Deputados, sem passar pelo Senado.