Damares Alves voou com cotas parlamentares para fazer cultos como pastora. Por Marcelo Auler

Atualizado em 22 de dezembro de 2018 às 9:39
Bolsonaro e a futura ministra Damares Alves

Publicado no Blog do Marcelo Auler

Em algumas de suas muitas palestras e pregações religiosas, todas devidamente alardeadas nas redes sociais, notadamente no Youtube, a futura ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Damares Regina Alves, reafirma com frequência que “as instituições piraram” e que “chegou o momento” de as igrejas evangélicas governarem o Brasil.

Há, no comentário, ainda que de forma indireta, críticas aos políticos de uma forma em geral.

Independentemente do seu direito constitucional de expor o que pensa e criticar, Damares pode estar sendo injusta, ao deixar no ar a possibilidade de um menosprezo à classe política. Injusta e, no mínimo, mal-agradecida.

Afinal, prestes a completar 54 anos no próximo dia 11 de março – nasceu 21 dias antes do golpe militar de 1964 – ela passou 19 anos, ou seja, mais da metade da sua vida adulta, convivendo e dependendo dos políticos.

OAB suspensa – Formada em Direito pela Universidade de São Carlos, no interior de São Paulo e, ao que consta, em Pedagogia – muito embora nunca tenham esclarecido por qual instituição de ensino -, seus últimos 19 anos foram vividos como assessora parlamentar. Função que acabou lhe ajudando a impulsionar o exercício “missionário de pastora evangélica”. O mesmo que hoje lhe permite afirmar que “chegou o momento” de as igrejas evangélicas governarem o Brasil.

Conforme registro da própria Câmara dos Deputados, a hoje pastora da Igreja Evangelho Quadrangular ingressou na função de assessora/secretária parlamentar em 1 de fevereiro de 1999, com 35 anos incompletos. Entrou no Legislativo, portanto, quatro meses antes de conquistar a Carteira da OAB nº 119.606, na subseção de São Carlos (SP), obtida em 1 de junho de 1993. Carteira, aliás, que segundo consta do site da OAB seccional de São Carlos, está suspensa, como mostra a ilustração ao lado, uma reprodução fotográfica editada da página da seccional de São Carlos da OAB-SP.

Na Câmara, foi assessorar o então deputado Josué Bengtson, do PTB do Pará. De lá para cá, transitou por outros seis gabinetes parlamentares. A partir de março de 2015, com o afastamento de Arolde Oliveira para ocupar uma secretaria no governo do Estado do Rio de Janeiro, bandeou-se para o gabinete do senador Magno Malta (PR-ES). Ali permaneceu até ser chamada pelo capitão eleito, Jair Bolsonaro, para ocupar o ministério que o senador capixaba imaginava seu.

Como fica claro no quadro abaixo, com dados oficiais das duas Casas Legislativas, Damares não tinha preferência política. Trabalhou com parlamentares de diversos partidos, ainda que não se possa especificar por este detalhe a ideologia dos mesmos.

Religião em comum – Um destes parlamentares, por exemplo, o ex-deputado Henrique Afonso, cuja base eleitoral é a região de Cruzeiro do Sul (AC), foi eleito vereador em 1997 pelo PCdoB. Em 1999 elegeu-se deputado federal pelo PT, no qual foi punido, em 2009, por votar contra a legalização do aborto. Acabou mudando para o PV junto com a então senadora Marina Silva, também do Acre e também evangélica.

Em comum estes parlamentares – com exceção de Celso Jacob, com quem Damares permaneceu um mês enquanto ele exerceu o mandato interinamente – tinham a opção religiosa. Todos são ligados às igrejas evangélicas, ainda que de denominações diferentes.

Bengtson e o Pastor Reinaldo são da Igreja do Evangelho Quadrangular, a mesma da futura ministra. João Campos é pastor da Assembleia de Deus Vila Nova, em Goiânia (GO). Henrique Afonso pertence à Igreja Presbiteriana. Roberto de Lucena é da Igreja O Brasil Para Cristo (OBPC). Arolde de Oliveira ingressou no mundo evangélico pela Primeira Igreja Batista de Niterói. Sem falar de Magno Malta, pastor e cantor gospel.

Esta ligação em comum faz levantar dúvidas se Damares atuou como assessora parlamentar ou, usando do cargo conferido pelo legislativo, impulsionou sua carreira de pregadora e difusora do evangelismo. Logo ela passou a ser tratada como assessora jurídica da Frente Parlamentar Evangélica e da Frente Parlamentar em Defesa da Família e Apoio à Vida.

Isso possivelmente explique o fato de que, em 11 anos, entre agosto de 2007 e agosto deste ano (2018) o Blog tenha identificado nada menos do que 77 viagens para 18 dos 27 estados brasileiros. Viagens que normalmente partiram de Brasília onde oficialmente ela reside. Mas nem sempre os voos começaram pela capital.

Tudo a um custo para o chamado erário público de R$ 51.242,60, apenas com passagens aéreas emitidas pelas cotas destes quatro parlamentares.

A viagem de uma pregação em Curitiba, em outubro de 2013, não aparece entre as passagens usadas por Damares. A igreja terá pago?

Trata-se de um levantamento incompleto. Basta notar que no Youtube há palestras dela, por exemplo, em Campo Grande (MS), estado para o qual não aparece qualquer viagem entre as relacionadas nas páginas da Câmara e do Senado.

Também não consta sua ida a Curitiba, em outubro de 2013, para pregações evangélicas, devidamente anunciadas no Facebook. Podem ter sido custeadas por terceiros. Mas não há como afirmar isso. Procurada, como se explicará abaixo, a pastora não retornou ao Blog.

Trabalho de Garimpagem – Pelo levantamento feito nos sites da Câmara e do Senado, neste período em que Damares assessorou deputados do Acre, São Paulo e Rio de Janeiro, além do senador do Espírito Santo, ela esteve em estados teoricamente sem nenhuma ligação com os parlamentares para os quais trabalhava. Consta que ela passou por Amazonas, Amapá, Bahia, Ceará, Goiás, Minas Gerais, Pará, Paraná, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe.

Levantar estas viagens, na verdade, é um trabalho de garimpagem, que as casas legislativas não facilitam. Não existem dados agrupados de viagens de servidores. O que se encontra no site da Câmara, a partir de abril de 2007, são as especificações em torno das cotas dos parlamentares.

Entre elas estão despesas de passagens aéreas ou alugueis de locomoção (que pode incluir passagem ou aluguel de aviões) e emissão de bilhetes aéreos. Isto mês a mês. Em cada mês há o registro das passagens emitidas na cota do parlamentar. É preciso que se abra uma a uma para saber quem se beneficiou daquela passagem e qual o percurso feito. O site sequer diz a data da viagem, mas sim a da emissão do bilhete.

O Blog pesquisou apenas os parlamentares para os quais Damares trabalhou a partir de abril de 2009 (data disponibilizada pelo Portal de Transparência da Câmara). Não vistoriou outros deputados para verificar se houve, por exemplo, doações de passagens na condição de assessora da Frente Parlamentar Evangélica. O que, teoricamente, não seria permitido.

Escândalo das passagens – Em 2009, na formula de escândalo, veio a público o uso indevido dessas passagens aéreas por parlamentares. Muitos doavam. Alguns até vendiam passagens a terceiros, Entre os envolvidos estava Henrique Afonso, do Acre. Inclusive por 22 bilhetes aéreos emitidos em nome de Damares.

A denúncia levou as mesas das duas casas legislativa baixarem novas normas sobre o assunto. Na Câmara foram estipuladas no Ato da Mesa 43/2009. Ele impediu a distribuição de passagens a terceiros, mas ainda considerou legais bilhetes aéreos a conjunges e filhos. Admitiu ainda o reembolso das “despesas de funcionários a serviço: com passagens aéreas, terrestres, marítimas ou fluviais; com hospedagem; com locação ou fretamento de veículos, aeronaves e embarcações; com serviços de táxi; com pagamento de pedágio e estacionamento”.

Nada especificou sobre o serviço a ser feito pelo servidor. Nem o local onde ele poderia ocorrer.

Isso permitiu, por exemplo, que em fevereiro de 2009, o deputado Henrique Afonso, do Acre, usando sua cota parlamentar, emitisse um bilhete aéreo para Damares no percurso Brasília-Salvador-João Pessoa e outro de Recife para Brasília. Já em 12 de maio de 2010 a passagem emitida saía de Brasília como destino de Belém e Macapá. Sem qualquer especificação do serviço a ser feito nessas cidades pela sua assessora. Em 18 de novembro do mesmo ano, o bilhete emitido em nome da assessora/pastora foi para Manaus (AM) e Santarém (PA).

Apenas nestes deslocamentos o gasto da Câmara foi de R$ 1.944,48. Entre março de 2003 e maio de 2010, Damares consumiu R$ 12.509,54 em 24 passagens aéreas (algumas com mais de um trecho de voo) emitidas através da cota do parlamentar do PV/AC. Isto é, com dinheiro público. (…)