De Lula a Lula. Por Leonardo José Ostronoff

Atualizado em 21 de maio de 2018 às 16:26
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Lula em sua caravana pelo Sul do país

Publicado no Diplomatique Brasil

Por Leonardo Ostronoff, pós-doutorando do Departamento de Sociologia da USP/Fapesp.

São Bernardo, dia 7 de abril de 2018. Milhares de pessoas no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC ouvindo o discurso de Luiz Inácio. Não era um momento fácil, ao contrário, em seu discurso Lula anunciava publicamente a decisão de se entregar à Polícia Federal. As reações foram muitas, desde o choro esperado, até devaneios de não permitir a saída de Lula do sindicato, mesmo contrariando a vontade já anunciada do próprio. Nos canais de TV, a entrega do ex-presidente foi mostrada por todo o percurso em tempo real como um grande circo midiático. Era fato, Lula estava preso. O contraste com as cenas da vitória eleitoral em 2002 eram inevitáveis, a alegria e a esperança vivas do começo de um processo institucional que culminaria, quem diria, naquele dia triste em São Bernardo. Mas como da eleição histórica de um metalúrgico por profissão, chega-se ao evento de resistência a prisão?

Dezesseis anos de história se passaram, não sendo uma matéria fácil de tratar. Mas alguns acontecimentos são importantes para esclarecer um pouco toda essa situação, e posso falar deles porque muitos vivi de corpo presente. A reforma da Previdência em 2013, primeiro ano de governo Lula, talvez seja um dos mais simbólicos. Toda expectativa do primeiro governo de esquerda eleito do Brasil sofreu um forte abalo quando a sua primeira grande ação escolhida foi agradar ao mercado e atacar os direitos dos trabalhadores.

A reforma da Previdência de 2003 foi a primeira grande contradição aparente do PT no poder, ocasionando o maior “racha” da história desse partido em sua história: a criação do Psol. A reforma de 2003 expressou publicamente uma diferença interna que já existia desde os anos 1990 no interior do PT, onde dois blocos disputavam a direção do partido: Articulação Unidade na Luta e a esquerda do PT. Para além da descrição da dinâmica interna, esses dois blocos representavam uma disputa ideológica dos rumos que deveriam ser tomados pelo partido: de um lado uma postura mais pragmática, onde chegar ao poder era o foco do projeto; de outro, uma resistência, onde a revolução era um rumo estratégico. A vitória de Lula em 2002 foi a consolidação do projeto de poder da Articulação, deixando a esquerda do PT cada vez mais enfraquecida. O racha que resultou no Psol tornou esse último bloco fragilizado, golpe do qual ele nunca mais iria se recuperar. A palavra chave no PT passou a ser “governabilidade”.

Logo veio o chamado “mensalão”, período difícil para o partido, com a condenação de um dos seus principais líderes, José Dirceu. O abalo foi grande, mas superado pela vitória eleitoral em 2006. O sucesso econômico somado aos projetos sociais do governo Lula fizeram do segundo mandato um período de grande empolgação. O Brasil passava a ser apontado como um dos países de maior emergência mundial e Lula se tornou um líder global. Éramos o país da Copa do Mundo e das Olimpíadas! O sucesso fez o então presidente escolher sua sucessora sem grandes questionamentos internos, sem sequer prévias. Alguns focos questionadores surgiram, mas foram logos sanados pela popularidade de Lula, que acabou por indicar Dilma Rousseff. Nesse ponto da história, os rumos já começavam a desenhar a tragédia que viria.

Uma nova vitória do PT em 2010, sem muita dificuldade, fez a sensação de sucesso crescer ainda mais no interior do partido. Quem questionaria essa política diante de três vitórias consecutivas para a Presidência? Algumas vozes soltas. Tudo parecia consolidado, um sucesso sem precedentes na história desse país. Ser de esquerda, antes um sinal que beirava à marginalidade, agora era una buena onda, como dizem os argentinos. O processo Dilma se repetiu na escolha de Fernando Haddad para a prefeitura de São Paulo: indicação de Lula, sem prévias e vitória eleitoral incontestável. Era ao auge do projeto de poder da Articulação, ganhava-se a cidade de São Paulo derrotando um dos principais líderes tucanos: José Serra. Porém, como nada é homogêneo, as brechas no interior da política eleitoral vitoriosa do PT começaram a ser expostas.

As manifestações de junho de 2013 vieram como um tsunami que arrastou tudo o que via pela frente, inclusive a popularidade da gestão Haddad. O contrassenso em não dialogar com o movimento e condená-lo publicamente isolou a prefeitura de São Paulo nesse momento, fazendo-a recuar diante das multidões que saíam às ruas, já não somente na capital paulista, mas pelo país todo. Muito se falou sobre o Junho de 2013: culpa do lulismo que se entregara aos empresários, um movimento da direita para derrubar o PT etc. Também acompanhei por dentro este movimento, então, posso dizer com a legitimidade da experiência vivida. Um movimento que nasceu do questionamento correto no aumento indevido da passagem de ônibus na cidade de São Paulo, tomou proporções gigantescas, não havendo preparação nas suas lideranças para tanto. Fato é que aquilo que nós de esquerda sempre sonhamos e desejamos nas assembleias e bares, aconteceu: “as massas” foram às ruas. Porém, elas não eram vermelhas, muito menos, revolucionárias. Descobriu-se o óbvio: somos um país de maioria conservadora, onde às massas lhes cai melhor o verde-amarelo. Ao fim do movimento, a revogação do aumento na passagem foi anunciada em uma quarta-feira, dia em que estávamos reunidos no sindicato dos advogados, situado no centro de São Paulo, justamente discutindo a manifestação do dia seguinte na Paulista. Foi naquela quinta-feira que a direita dominou o movimento nas ruas e mostrou sua cara queimando bandeiras do PT. Era o marco de uma direita popular organizada no Brasil, setor que durante muito tempo ficou adormecido.

O abalo foi grande, mas o discurso petista de transformar Junho de 2013 somente em uma ação da direita também não ajudou. A falta de autocrítica do petismo conduziu ao aumento da polarização, ocasionando uma disputa de grandes proporções entre dois polos. Para o PT, o palco derradeiro desse ciclo seria a eleição de 2016, onde Dilma derrotou Aécio Neves por muito pouco. Diferente do que seria indicado diante de uma vitória apertada contra um candidato problemático e com menor financiamento de campanha, o petismo não mudou sua postura, ao contrário, a vitória parecia reafirmar todo projeto executado até então. Ledo engano, a direita apenas cresceu e se organizou ainda mais, surgindo movimentos como o MBL e o Vem pra Rua.

Enquanto Dilma e o PT negavam a existência de uma crise econômica, a direita afirmava esta como realidade. Quando a população sentiu no bolso que a crise era real, a indignação culminou na grande manifestação de março de 2015, que pedia o impeachment de Dilma. O fato, que parecia improvável até dias antes da votação no Congresso Nacional, tornou-se uma dura realidade. Aconteceu um golpe institucional, pois não havia provas definitivas contra a presidenta; isso é preciso ser dito com todas as letras. Porém, a política é também feita de golpes e, principalmente, do apoio popular, seja ele correto ou não. Para além da militância da esquerda, a população não foi às ruas defender Dilma, não existindo uma indignação de cunho nacional contra o impeachment. O desgaste dos anos da “política de sucesso” do PT agora aparecia em definitivo. Porém, mesmo assim, o petismo continuou sem autocritica, negando toda e qualquer acusação feita, transformando-as em descalabros de uma perseguição contra sua política de redução das desigualdades no país. Os polos somente se isolaram mais, tornando impossível qualquer diálogo. Com avanço da Lava Jato e condenações de nomes fortes do governo Lula, o cerco foi se fechando. A condenação dele se materializava a cada dia. Mesmo assim, o ex-presidente continua em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto. O desfecho foi o que vimos em São Bernardo naquele sábado, Lula após discursar, se entrega e está preso até este momento. Lula a Lula, passado a limpo, para entendermos o dilema em que estamos.

Para nós da esquerda, seja qual for o segmento, resta pensar nos rumos que iremos tomar. Ao petismo, cabem poucas alternativas: 1) afirmar a inocência do ex presidente, pedindo por sua liberdade e sustentar sua candidatura ao Planalto; 2) fazer uma grande autocrítica pública, fato que sinceramente não creio que vá acontecer; 3) construir um novo nome em lugar de Lula para a Presidência, campanha que não será nada fácil. Todas as alternativas passam ao largo de recolocar o PT no poder tão cedo. Duas coisas devem ser ditas: a primeira, a política da Articulação com seu pragmatismo eleitoral conduziu a um aparente sucesso, mas trouxe como destino final a maior tragédia da esquerda brasileira; a segunda, sem uma autocrítica real, uma recuperação do PT irá demorar muito mais tempo. Para além do PT (sim, existe esquerda fora o PT no Brasil), algumas alternativas estão sendo realizadas já faz algum tempo. A ideia de frente de esquerda me parece, sem dúvida, a melhor. Dizem que de tudo se tiram coisas boas, a ver, contudo, pensando no dia em que Lula se entregou lá em São Bernardo, de fato, existe uma boa lição: uma unidade entre setores da esquerda. Lá estavam MTST, MST, CUT e Intersindical, UJS, diversos movimentos e ativistas singulares. Quanto aos partidos estavam o PT, Psol e PCdoB, o que anos atrás seria difícil imaginar. Todos diferentes, mas que formaram uma frente em defesa de Lula. Dialogaram, agiram em conjunto, se mostraram unidos publicamente. No discurso, a capacidade diferenciada de Lula aparece, pois é para esse fator que ele chama à atenção não somente ao citar os nomes dos petistas no palanque, mas de destacar com ênfase militantes de outros partidos, como por exemplo, o Índio da Intersindical.

O caminho da reconstrução da esquerda após a prisão de Lula passa necessariamente pela aproximação cada vez maior entre os diferentes setores. Depende dela a criação de um campo de resistência para os próximos anos, e não se enganem, será uma tarefa trabalhosa para nós. Por outro lado, nos permitirá enfim ir além do velho projeto de poder, pensando não somente em ocupar a cadeira maior do Planalto, mas de formar uma outra cultura política em nossa sociedade. É tempo de criar!