“De novo a sirene não tocou, de novo perdemos várias vidas”, diz integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens

Atualizado em 27 de janeiro de 2019 às 16:01
Simone Silva, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) – Foto: Reprodução

Publicado originalmente no Catarinas

“Estou arrasada, em choque. Não consigo acreditar que o crime aconteceu novamente e pela mesma empresa. De novo a sirene não tocou, de novo perdemos várias vidas por causa da ganância do capitalismo, que chega, invade nossas casas, nossos quintais, arromba nossas portas e pra gente só fica o prejuízo”, conta por telefone a professora Simone Silva, integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Vítima do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, em novembro de 2015, Simone estava no escritório da Renova, organização responsável pela reparação dos danos às famílias atingidas, quando recebeu a notícia do ocorrido em Brumadinho.

“Estava cobrando o cartão emergencial, que era para ter sido entregue em 2015. A empresa tranca a porta do escritório, deixa a gente do lado de fora, sem água e nenhuma assistência. Na fila havia mulheres grávidas e crianças que estavam reivindicando um direito que é delas”, afirma.

O novo rompimento da barragem da mineradora Vale, na Mina do Feijão, em Brumadinho, região metropolitana de Belo Horizonte (MG), causou uma avalanche de rejeitos de mineração que devastou parte da comunidade da Vila Ferteco, no início da tarde desta sexta-feira (25).  O desastre é próximo àquele que aconteceu há três anos, apesar das diferentes proporções: a barragem de Brumadinho armazenava uma tonelada de rejeitos, a de Mariana 50 toneladas. Com a lama densa, ao menos 34 pessoas morreram, entre 250 e 300 estão desaparecidas e mais de 80 desabrigadas.

“Mais uma vez a história se repete como tragédia. De um lado a Vale S.A, grande mineradora mundial, e do outro o povo brasileiro, buscando juntar corpos enterrados na lama de empresas criminosas”, posicionou-se o MAB em nota publicada no site.

UMA HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA

A empatia com os atingidos é de quem compartilha um sentimento comum.

“Tive uma crise de choro imaginando que aquele povo vai viver tudo o que nós vivemos, vão ter que fazer todas as lutas. Eu sinto na pele e no corpo, por isso a gente já consegue ver além tudo o que vão enfrentar”, conta a integrante do MAB.

A família da professora é uma das não reconhecidas como atingidas. O cartão emergencial dá direito a um salário mínimo e mais 20% do valor para cada dependente, mas poucas pessoas têm acesso. Depois de três anos morando numa casa prestes a desabar, desgastada pelo tráfego intenso de caminhões pesados usados na retirada de lama, ela conquistou recentemente o direito ao aluguel social, assim como outras famílias que viviam na mesma área de risco.

O benefício consiste no pagamento do aluguel, água e energia elétrica pela Renova. Como a Vale não aceitava arcar com os custos da remoção das 30 famílias que residiam na área considerada de risco, o acesso ao direito foi assegurado depois de uma manifestação que trancou a BR 101 por mais de dez dias.

“A empresa fez um laudo para atestar que a culpa era nossa, que usamos material de má qualidade, que não contratamos engenheiro e nem arquiteto para fazer as casas. No dia da assembleia eu questionei: ‘por que vocês deixaram a barragem romper se dizem que só tinha arquiteto e engenheiro de última geração?’”.

Ela passou a integrar o MAB logo após o rompimento da barragem em Mariana (MG), tornando-se ativista dos direitos dos atingidos. Toda a sua família, avó, tios, primos, moradores de Gesteira, comunidade de Barra Longa, tiveram que abandonar suas casas, levando somente as roupas do corpo.

“Minha família perdeu tudo que tinha, toda nossa história. Fui nascida e criada em Gesteira, lá era meu cantinho do céu, onde a família se reunia, onde vivemos os melhores momentos”, relembra.

Nenhuma casa foi reconstruída desde então, como afirma. “São três anos de muita luta, de constrangimento, humilhação. A Vale age com muito racismo, preconceito e criminalização de militantes. Muitos de nós estão passando necessidade, fome, vivem de cestas básicas, compradas pelo próprio coletivo”.

Na comunidade onde mora, em Barra Funda, formada por cerca de 100 moradores, uma pessoa cometeu suicídio e duas tentaram pôr fim a própria vida por falta de assistência da Samarco. O tio morreu há poucos meses, segundo ela por uma depressão causada pela negligência da empresa.

“As pessoas não morreram só em novembro de 2015, continuam morrendo todos os dias, porque a Samarco, a Vale, levam as pessoas ao limite. É muita pressão, meu tio, por exemplo, desistiu de viver por falta de recursos. Ele dizia:  ‘Simone, por que ninguém vê que estou morrendo?’. A assessoria técnica fez vários ofícios para que dessem atenção, mas não fizeram nada”, revela.

O efeito cumulativo também é sentido pelos filhos. A filha de quatro anos, que na época do rompimento tinha nove meses e o filho 16 anos estão contaminados pelo metal pesado da lama. Os custos mensais no início do tratamento com consultas e remédios, entre R$ 2 e 3 mil, nunca foram recuperados. O marido que trabalhava em dois empregos antes do crime hoje está desempregado por ter contraído uma bactéria que causa ferimentos na mão. O contrato de trabalho de Simone terminou recentemente. Todos em sua casa estão desempregados.

“Meus filhos estão condenados porque enquanto viverem terão que ser acompanhados por médicos e mesmo assim não receberam nenhum suporte, não são reconhecidos como atingidos. Diziam que se apresentasse o laudo da alergia da minha filha, eles dariam o cartão emergencial. Hoje, a minha filha deve ter uns quinze laudos, porém não recebemos nenhuma ajuda de custo”.

A ativista acusa a Vale de racismo ambiental, pois como relata, quando a lama invade os espaços centrais da cidade o serviço de limpeza retira os rejeitos do local e deposita em áreas mais afastadas onde moram as pessoas de baixa renda. Nem mesmo os sintomas da filha relacionados à contaminação impediram que a lama fosse depositada perto da sua casa.

“Minha filha começou a apresentar sintomas de alergia, teve vômito e diarreia por um mês e meio sem parar. Chegaram a marcar psiquiatra pra mim, diziam que eu era louca, que minha filha não estava doente por causa da lama, porque a lama era inerte. Pedi ‘pelo amor de deus não coloca lama na minha rua, pois minha filha é alérgica’. A Vale não consegue fazer nenhuma reparação sem causar danos a terceiros”.

A afirmação do presidente da Vale, Fábio Schvartsman, em Brumadinho, de que a lama é “rejeito inerte”, ou seja não tóxica, formada em sua maior parte por sílica (areia), causou revolta. Um relatório da ONU, divulgado no mesmo mês do rompimento em Mariana, já havia denunciado a sua toxidade. “Fiquei indignada com a notícia de que a Renova está lá em Brumadinho fingindo que faz as coisas. A Renova trabalha no território negando direitos, punindo as atingidas. A gente ouve o tempo todo: a lama é inerte, como se não causasse contaminação”.

Para a representante, a Renova tem causado mais conflitos do que reparação na região, devido a uma ação não planejada que privilegia algumas pessoas no acesso a benefícios, sem critérios definidos, causando discórdia e desmobilizando atingidos. “Esse outro monstro não foi criado pela Vale para reparar danos, pelo contrário, age de forma truculenta no território. O nome da Renova tem tudo a ver, renova todos os dias os danos causados na vida dos atingidos”, ironiza.

SOLIDARIEDADE A BRUMADINHO E MOBILIZAÇÃO

A representante explica que uma equipe do MAB já está no local do rompimento em Brumadinho para dar assistência aos atingidos. Uma comitiva formada pelos atingidos em Mariana também se prepara para levar solidariedade. Há todo um trabalho de formação e mobilização política a ser feito junto às novas vítimas.

“Este ano não será fácil para nós que somos de luta. O primeiro passo é a pessoa se reconhecer como atingido que não é um processo fácil. Vai ser trabalho de formiguinha nos grupos de base para as pessoas se reconhecerem e partirem para luta”, avalia.

Em 15 de janeiro, o Governador de Minas, Romeu Zema (Partido Novo), reuniu-se com representantes da Samarco para discutir a reinstalação da empresa em Mariana. A mineradora foi impedida de continuar sua atividade logo depois do rompimento da barragem. A Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Semad), em outubro de 2016, suspendeu o direito da Samarco de minerar em Mariana, Ouro Preto e Matipó. Desde então a empresa se mobiliza para retomar sua licença.

“Conversamos sobre os cerca de 14.500 empregos que serão gerados com a retomada da atividade da empresa”, disse Zema em seu facebook. Conversaram também sobre “investimentos que a empresa está fazendo para a necessária conservação do Meio Ambiente, da ordem de meio bilhão de reais”.

“O governador defendeu que o capital tem que ser gerado para o povo ter renda, mas antes disso tudo ele tem que pensar nas pessoas atingidas. A primeira coisa é dar segurança para pessoas em situação vulnerável. Sabemos que o presidente do Brasil também é a favor das empresas”, argumenta.

A entrevistada ressalta que a sobrevivência das/os moradoras/es de Barra Longa nunca dependeu da mineração. “Nossa cidade não precisa da mineração para viver, pelo contrário, a mineração trouxe miséria para nós. Antes sobrevivíamos com o que ganhávamos, plantávamos no quintal, dividíamos plantação com outras pessoas. Eu não precisava comprar, porque minha vó trazia frutas, verduras, biscoito, peixe. Hoje passamos necessidade”.

Vinte pessoas morreram no rompimento da barragem de Fundão – até então o maior desastre ambiental do país. O MAB calcula que quase dois milhões de pessoas foram atingidas pelo crime ocorrido na Bacia do Rio Doce praticado pela Samarco, empresa controlada pelas mineradoras Vale e BHP Billiton. Ao todo 30 mil pessoas foram cadastradas e 8 mil foram indenizadas por danos gerais. O programa de auxílio financeiro emergencial assiste atualmente 10 mil famílias.

MANIFESTAÇÃO DA VALE

No último comunicado oficial da Vale, publicado no site, a mineradora informou que  apresentou ao Ministério Público do Estado de Minas Gerais, ao Ministério Público Federal e à Superintendência da Polícia Federal em Minas Gerais comunicado formal reiterando que está empreendendo todos os esforços para levantar as informações possíveis sobre o acidente.

Destacou que os recursos humanos estão “focados no apoio às famílias dos desaparecidos e na organização das frentes necessárias ao melhor atendimento das autoridades públicas”.