De onde vem a ideia de Mbappé de que as seleções sul-americanas são inferiores?

Atualizado em 22 de dezembro de 2022 às 17:59
Mbappé e os inferiores

Em meio à vitória argentina na Copa do Catar, viralizaram nas redes sociais as declarações de Mbappé em que o atacante francês afirma haver uma “inferioridade” das seleções sul-americanas em relação às europeias. O perfil do atacante sugere não se tratar de um mero deslize. Elas têm uma história.

Berço de esporte

O talento esportivo do jogador francês não é puro fruto do acaso, de uma paixão pelo futebol que contra tudo e todos irrompe pelo mérito individual e se torna um herói nacional mundialmente admirado.

O talento recorrentemente apresentado por diversos comentaristas franceses como dom ou até algo “inato” se inscreve numa construção social. Kylian Sanmi Mbappé Lottin cresceu num berço do esporte.

O francês vem de Bondy, cidade localizada no departamento mais pobre da região metropolitana de Paris. Alguns bairros fazem parte do que o poder público chama de “zonas sensíveis”. São bairros pobres que conhecem quotidianamente a tensão ligada ao tráfico de drogas. Neste ano, uma troca de tiros entre gangues levou o prefeito a pedir reforço policial ao governo. Mas Bondy não é só crime.

A cidade é dotada de uma forte infraestrutura cultural e esportiva. Da natação ao handebol, do futebol ao basquete, os membros da Associação Desportiva de Bondy estão frequentemente nas melhores posições de competições regionais e internacionais. As irmãs Joséphine Jacques André Coquin e Lauren Rembi foram campeãs de esgrima entre 2006 e 2010.

Mbappé é filho de Faysa Lamari, ex-jogadora profissional de handebol da primeira divisão do clube da cidade, e Wilfred Mbappé, ex-jogador amador, técnico e educador esportivo.

Mbappé cresceu tendo como referência Jirès, o irmão adotivo mais velho, recrutado pelo pai para jogar futebol em Bondy. Jirès foi adotado pela família Mbappé por conta das dificuldades que vivia no Congo.

De acordo com a imprensa francesa, Mbappé teve uma infância confortável, com pais superprotetores. Ele cursou o ensino fundamental num colégio particular católico, para ficar longe das “más influências” e para que tivesse uma educação “rígida”.

Os pais o matricularam em diversos cursos esportivos e artísticos. Mbappé foi portanto introduzido no universo esportivo e futebolístico precocemente. Ele frequentava o vestiário do clube onde jogava o irmão, onde inevitavelmente ouvia todos os conselhos e táticas compartilhadas.

Poucas frustrações

Segundo pessoas próximas à família Mbappé, a criança era bastante autoconfiante. Contam que ele elaborou um plano de carreira aos 4 anos: entrar no Instituto Nacional de Futebol, jogar num time francês, no Real Madrid, ganhar a Bola de Ouro e a Copa do Mundo. Os desejos infantis foram quase todos realizados.

Aos 11, Mbappé queria entrar para a principal escola de formação do futebol francês, o Institut National du Football de Clairefontaine. Foi selecionado, entre mais de 2 mil concorrentes. Seu comportamento era percebido por alguns treinadores e colegas como autossuficiência.

Choveram propostas de diversos clubes europeus (Caen, Mônaco, Chelsea, Real Madrid), reforçando a autoconfiança precoce. O plano da família era manter o filho na França.

Uma das frustrações na vida do adolescente, quando o time de Caen cai para a segunda divisão e, em meios a cortes financeiros, desiste de recrutá-lo. A promessa de 180 mil euros para o jovem de 12 anos pela assinatura de um contrato não se concretiza. Mas outros clubes europeus continuam disputando-o.

O documentário “Kylian Mbappé, hors normes” conta que a família costumava decidir de modo coletivo, mas que era a palavra do então adolescente a que prevalecia. E que não atrapalhar a criatividade do filho era uma exigência dos pais nas negociações.

Como Kylian desajava quando criança, o Real Madrid lhe convida a visitar suas instalações. Mbappé foi acolhido aos 14 anos por Zinedine Zidane. Mas a oferta do AS de Mônaco foi mais persuasiva. De acordo com o jornal l’Equipe, a assinatura do contrato valeu 400 mil euros.

Acompanhado integralmente pelo pai, Mbappé vê o poder do clube, adquirido por um magnata russo, comprar jogadores do Real Madrid, vindos de Portugal, da Espanha e da Colômbia.

Em entrevista ao Equipe, Bruno Irles, treinador da época, diz que Mbappé “não era muito receptivo às críticas que seriam construtivas para ele”. Frustração: o adolescente raramente seria escalado. O pai, o tio e amigos acreditavam que a “joia” deveria ser gerida de modo diferente dos demais.

L’Equipe conta que o então técnico foi convocado pela direção do clube, proibindo-o de colocá-lo na reserva e permitindo ao jovem atacante treinar sozinho para não permanecer às ordens de Bruno Irles, enviado posteriormente para um pequeno time regional da França.

Mas o próximo técnico reproduz a postura de Irles, provocando a incompreensão de Mbappé, seguro de sua capacidade para afrontar os melhores. Mais uma vez suas frustrações não durarão muito tempo.

Eurocentrismo

O eurocentrismo de Mbappé, ilustrado por suas declarações sobre as seleções sul-americanas, pode surpreender quando se considera a origem argelina da mãe e camaronesa do pai.

“Existem várias equipes europeias também a vantagem que nós europeus temos é que jogamos sempre entre nós e temos partidas de alto nível o tempo todo. Temos a Nations League, por exemplo. Quando a gente chega na Copa do Mundo, estamos prontos”, disse em entrevista ao TNT em maio deste ano.

“A Argentina e o Brasil nesse aspecto não têm isso. Na América do Sul, o futebol não é tão avançado quanto na Europa. Por isso que quando você olha para as últimas Copas, sempre são os europeus que ganham”.

A atitude do jogador após a vitória francesa contra o Marrocos, vestindo o uniforme marroquino, parece até um contraste.

Fato é que é rigoroso o tratamento da imagem de Mbappé, coordenado pela mãe, conhecida por velar pela humildade do jogador, mas seu ponto de vista do mundo passa necessariamente pela centralidade mundial da Europa.

Os extra-europeus que o jovem Mbappé viu jogarem por onde passou foram comprados por times europeus.

Aos 17 anos, ele viu clubes da Europa se degladiarem por seu talento. Com o Chelsea vindo à sua procura, o Mônaco lhe pagou 3 milhões de euros pela assinatura de um contrato profissional.

De acordo com L’Equipe, Mbappé teve àquela idade um aumento gradativo de salário, indo de 85 mil euros por mês no primeiro ano para 120 mil, no terceiro.

Escalado para jogar na seleção francesa na Copa do Mundo de 2018, conheceu logo de cara a vitória dos “bleus”. O Real Madrid teria oferecido 180 milhões de euros ao Mônaco para obtê-lo. O Barça também estava à espreita. Mbappé vê o Paris Saint-Germain gastar a fortuna para adquiri-lo.

O PSG, que adquirira os sul-americanos Neymar e Messi. O PSG pode até ser propriedade do Catar, mas a identidade é europeia, uma aparência de dominação do continente.

Arrogância e neocolonialismo

Não é de hoje que Mbappé é criticado na própria França por arrogância. Quando considerada a história individual do jogador e seu lugar de fala, a crítica ganha sentido.

Do poder excepcional de um ao lugar do privilégio mundial, a lógica parece reforçada pelo consolo do presidente da França em pleno campo na capital catari. O mesmo presidente que um dia humilhou um cidadão dizendo-lhe que bastava atravessar a rua para encontrar um emprego ou que há aqueles que na sociedade não são nada.

Mbappé é dos milionários do mundo que contam os afagos do poder diante da “frustração” de não ganhar de novo o primeiro lugar mundial, aos 23 anos. De ficar apenas com o prêmio da Melhor Chuteira.

Apesar das lições de simplicidade comunicacional, a banalidade singela do “nós europeus” e que as equipes sul-americanas não são tão avançadas quanto as europeias ou que não chegam prontas revela a força de uma visão colonial do mundo.

A Europa é dos fortes. A América do Sul, dos fracos. A Europa da excelência e o resto, do despreparo.

Uma visão que seria corroída pela Copa, com equipes como a do Marrocos ou do Japão eliminando progressivamente a tradição europeia.

Uma visão em que o mundo não é uma troca, mas uma dominação estática. Uma visão míope, porque não enxerga que a glória de “suas” ligas campeãs também vem dos talentos de fora. E que os saberes construídos vão para as seleções de origem.

Que um jogador talentoso que só tenha conhecido sucessos numa história de poder mundial acredite na sua excepcionalidade é uma coisa. Quando essa crença se transforma em superioridade civilizatória, é outra.

Eis o fracasso do “entre nós”: a visão reacionária das sociedades que inevitavelmente leva à derrota.