Por Lenio Luiz Streck, professor e advogado, e Marco Aurélio de Carvalho, advogado, coordenador do Grupo Prerrogativas
Depois de anular os processos penais contra Lula, por absoluta incompetência do juízo de Curitiba, o Ministro Fachin decidiu, com base nos artigos 21, inc. XI, e 22, parágrafo único, “b” do RISTF, afetar a questão ao Plenário do Tribunal.
O artigo 22 autoriza o relator a submeter determinada matéria ao Pleno “quando, em razão da relevância da questão jurídica ou da necessidade de prevenir divergência entre as turmas, convier pronunciamento do Plenário”. Assim, o Agravo da PGR deverá (?) ser apreciado pelo Plenário. O art. 21, inc. XI, infere que ao relator, no âmbito das suas atribuições, compete remeter habeas corpus para julgamento ao plenário. A toda evidência, de logo, pode-se dizer que o art. 22 é condição de possibilidade para que, nos moldes do art. 21, inc. XI, o relator submeta ao pleno a vexata quaestio. Assenta-se, assim, que a atribuição do relator, por si só, não o autoriza a remeter quando bem entender.
Tudo certo? Não. Na verdade, o Regimento Interno deve ser interpretado como um todo e não em fatias. Além disso o RI não pode violar direitos fundamentais. Ou seja, o RI também pode ser inconstitucional.
Quando uma questão pode ser remetida ao Plenário? Quando o relator quiser? Registre-se: o Ministro decidiu no âmbito da segunda Turma, dizendo, inclusive, que todos os Habeas Corpus impetrados pela defesa de Lula restaram prejudicados. E como fez isso? Com base no artigo 192, do RI, que diz: quando a matéria for objeto de jurisprudência consolidada do Tribunal, o Relator poderá desde logo denegar ou conceder a ordem, ainda que de ofício, à vista da documentação da petição inicial ou do teor das informações. Isto é, invocar o art. 192 e depois afetar o julgamento ao plenário é absolutamente contraditório. Se o julgador entendeu por bem não levar à discussão sequer à turma, julgando-o monocraticamente, por que o submeterá ao plenário com fulcro no art. 22?
Ora, se o Ministro somente pôde decidir porque a matéria estava consolidada, por que, depois, usando o mesmo argumento, quer levar para o Plenário? Estamos diante de um hermeneuticum venire contra factum proprium.
Interessante é que para o Ministro a afetação vale e não vale. Quando iniciou o julgamento da suspeição de Moro, Fachin atravessou preliminar sobre a prejudicialidade do julgamento. Foi derrotado por 4×1. O que isto quer dizer?
Simples. Primeiro, a segunda turma entendeu que a característica da decisão e o seu alcance não tinham o condão de impedir a discussão da suspeição.
E, mais, a segunda Turma fixou a competência para julgar questão jurídica atinente aos processos do ex-presidente. Quer dizer: a suspeição é da competência da segunda Turma. Como pode, então, a incompetência do juiz ir para o Plenário?
Confirmada a tese do Min. Fachin, a própria suspeição, uma vez declarada, iria depois para o Pleno também.
A pergunta é: o artigo 22 estabelece uma forma de recurso de alguma Turma? Eis a questão. É para isso que foi feito o art. 22?
A resposta é não. Porque a “questão da afetação” tem de surgir antes. E não depois, travestida de recurso de uma decisão já tomada na Turma, seja monocraticamente, seja colegiadamente.
A decisão de Fachin anulando todos os processos é da segunda Turma. Ao pretender levar para o plenário, ele estaria recorrendo de si mesmo? O artigo 22 não pode ser uma pedra filosofal da hermenêutica do Regimento Interno.
Na verdade, o artigo 22 só tem sentido se for entendido como sendo um dispositivo que busca o full bench (plenário, banca cheia). Essa é a leitura apropriada do dispositivo.
Além disso, o Ministério Público nem pode recorrer. Trata-se de decisão concessiva de habeas corpus. Ministério Público não é parte no feito. Como pode recorrer? Ora, se o Habeas Corpus é remédio constitucional cujo manejo é exclusivo da defesa e seu rito sequer pressupõe conferir a oportunidade de contraditório ao órgão acusador (isso é pacifico no STJ e STF), então, por analogia (que não é proibida em processo penal) pode-se afirmar que o MP também não pode recorrer de decisão concessiva de habeas corpus.
Assim, em dez pontos, tem-se que:
1. É absolutamente contraditório remeter ao plenário discussão sobre HC decidido monocraticamente com base no permissivo do art. 192 do RISTF;
2. Isso porque se está a levar ao plenário matéria pacificada (uma das causas para remeter o julgamento ao pleno seria justamente a divergência de entendimento entre as turmas).
3. Há na intenção do Min. Fachin uma contradição, porque, primeiro, decide monocraticamente o HC em razão da consolidação do tema dentro do Tribunal (este é o exato teor do dispositivo do RISTF) e, na sequência, quer levar o tema ao plenário, tendo por fundamento o contrário do que diz o dispositivo do regimento que lhe autorizou a decidir o writ. Assim é difícil, não?
4. O recurso por parte do MP torna a questão mais grave ainda, porque o MP está recorrendo de habeas corpus, em que não é parte. Aqui vem a questão do papel do MP, que não deve fazer um agir estratégico. Nesse sentido, um interessante acórdão do STF (HC 69.889/ES – Rel. Min. Celso de Mello). Aqui também vale visitar os argumentos constante no voto do Min. Gilmar na ADPF 758.
5. Interpretar a lei não é como estar um rio em que se pode escolher a margem para acampar. Há sempre um “mínimo é” nos textos, mesmo que sejam os do Regimento Interno. A leitura a ser feita do RI, no caso do artigo 22, deve levar em conta o caráter per saltum, que é sempre prévio e jamais para, via full bench, servir de via oblíqua recursal.
6. Para não existir essa “escolha de margem”, parece razoável afirmar que ou se é julgado pela Turma (se há decisão monocrática, deve continuar o julgamento na Turma) ou se é julgado, desde logo – porque a questão se enquadra no artigo 22, pelo Plenário. Não nos dois.
7. Isto porque o poder de o relator afetar o plenário tem de ter limites e esse está no bojo das arguições de inconstitucionalidade, que tratam do full bench. O relator pode levar o tema ao Plenário basicamente para obter maioria qualificada da arguição de inconstitucionalidade, revogação de decisão vinculante que exige essa mesma maioria ou prevenir discordâncias entre turmas. Tanto é que somente pode decidir monocraticamente nos termos do artigo 192. Se o Regimento Interno permite que o relator faça escolhas, discricionariamente, a resposta é simples: o Regimento Interno nesse ponto é inconstitucional. Porém, lembremos: as “atribuições do relator” não podem ser lidas isoladamente. Deve-se analisar o regimento interno em sua totalidade. O teor do art. 21, inc. XI, não possui a expressão “se for o caso”. No entanto, é assim que deve ser lido.
8. Constitucional e processualmente, Fachin deveria ter submetido o HC diretamente ao plenário antes de decidir monocraticamente. Se ele decidiu monocraticamente, assinou a confissão de que não era caso de plenário. Parece elementar essa conclusão.
9. Por isso, o RISTF deve ser interpretado conforme a Constituição. Explicando: Se o inc. IX do art. 21 contivesse a expressão “quando for o caso”, poder-se-ia aceitar, com boa fundamentação, a remessa. Mas sempre per saltum, é claro. Antes. E não depois de decisão monocrática. Isto porque parece claro que o artigo 21 é procedimental. Ou seja, relator envia quando for o caso. E os casos estão dispostos no art. 22, parágrafo único, alíneas a e b (divergência ou relevância do tema). Entender diferentemente é assentar que a definição do juiz natural deixará de ser exsurgente da lei e se converterá em escolha subjetiva do Relator – e isso será inconstitucional.
10. Então, a interpretação que se deve conferir ao inc. IX do artigo 21 do RISTF é justamente no sentido de que o relator envia ao plenário quando houver essas duas hipóteses. E se essas duas hipóteses, de fato, estivessem presentes no caso do HC da competência, Fachin não teria julgado monocraticamente nos moldes do 192. Tertius non datur. Ou Fachin errou em ter julgado monocraticamente ou não é caso de plenário. Como o Fachin não poderá consertar o erro, não é caso de plenário.
Simples assim.