Decisão do acidente de Marília Mendonça não encerra debate sobre competência

Atualizado em 15 de maio de 2022 às 11:21
Avião que levava Marília Mendonça
Avião que levava Marília Mendonça. Foto: Reuters

Por Fernando Augusto Fernandes e Rodrigo Duarte

O STJ decidiu sobre um conflito de competência (CC 187.216/MG), suscitado pela Justiça de Minas Gerais, que o acidente aéreo que vitimou a cantora Marília Mendonça deve ser investigado no âmbito estadual. A decisão resolve a investigação, mas não encerra em casos aeronáuticos a competência, já que em uma investigação podem surgir elementos de competência federal.

A Constituição de 1988 prevê em seu artigo 21, XXII que compete à União executar os serviços de polícia aeroportuária. O artigo 109, respectivamente nos incisos IV e IX, da CF estabelece que a Justiça Federal possa processar e julgar os crimes e as infrações penais em detrimento de serviços ou interesse da União, bem como, os crimes cometidos a bordo de aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar.

A Assembleia Constituinte de 1988 estabeleceu a competência federal para o processamento de atos criminosos ocorridos seja no espaço aéreo ou em águas territoriais brasileiras em meios de transporte marítimos ou até mesmo fluviais.

A questão central está em verificar-se qual o bem jurídico afetado no acidente, se a vida é a competência será da Justiça comum, ou se ocorreu uma afronta a um interesse da União a competência será Federal.

Como exemplo prático, podemos utilizar um famoso caso ocorrido em 2006 envolvendo uma aeronave da Gol Linhas Aéreas e um jato executivo que colidiram enquanto voavam sobre a Serra do Cachimbo, em Mato Grosso. Naquele caso, uma aeronave se chocou com a outra, portanto se estava diante de um claro acidente relacionado ao controle de tráfego aéreo.

O que se apurou foi a ocorrência de um ato criminoso, seja do controlador de tráfego aéreo, que era militar da ativa, processado também na esfera militar como previsto, que não observou o jato executivo voando em uma altitude diferente da previamente autorizada, fato que o colocou em rota direta de colisão com o Boeing que voava de maneira correta. Existe ainda uma apuração da omissão dos tripulantes do jato executivo e que foram condenados, pois mantiveram o equipamento de identificação e transmissão de sua altitude em voo desligado durante o trajeto, impossibilitando uma adequada vigilância da aeronave pelos órgãos de controle.

Todo acidente aéreo sempre terá para os fins de precaução uma investigação administrativa no âmbito federal com o Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos), mas isso não torna por si só a competência da justiça federal, se o crime não tiver ocorrido dentro da aeronave ou não seja de forma a ofender o bem jurídico protegido e tutelado.

Há inúmeros casos em que autoridades policiais, judiciárias e até mesmo advogados requisitam ou aguardam os resultados das investigações dos acidentes promovidas pelo Cenipa que, por força do Código Brasileiro de Aeronáutica, é o órgão responsável por realizar investigações com o objetivo de prevenção de acidentes, na forma como estabelece seu artigo 86-A, combinado com o Decreto 9540/18, artigo 1º, §6º e Anexo 13 da Convenção sobre Aviação Civil Internacional (Convenção de Chicago) de 1944 da qual o Brasil é signatário.

Aliás, o Cenipa, em toda e qualquer comunicação com órgãos da justiça, esclarece textualmente que a investigação por ele conduzida não se assemelha a inquérito técnico e que o respectivo relatório final, com as conclusões obtidas nas apurações, sejam elas objetivas, conclusivas ou inconclusivas, não pode ser considerado laudo pericial. Como consequência, a sua utilização, ou de qualquer outra forma de expressão que reflitam análises subjetivas dos investigadores como instrução criminal e/ou prova em procedimentos judiciais ou de polícia judiciária poderá prejudicar a prestação jurisdicional.

Isso não impede que uma perícia e/ou investigação paralela, conduzida por órgãos policiais e de justiça seja feita. Aliás, é exatamente isso que deve ocorrer pois o relatório final de uma apuração de um acidente aéreo não se presta para fins de atribuição de responsabilidade civil ou criminal a quem quer que seja.

O Cenipa não possui e jamais possuirá poder de polícia. Essa não é a sua finalidade.

Portanto, não pairam dúvidas sobre a competência inicial de atuação quando ocorre um acidente aéreo, que é determinada à justiça estadual e seus órgãos auxiliares de atuação, não havendo óbice para que, no curso das investigações, se necessário e legalmente previsto, ser transferida à Justiça Federal.

O STJ vem entendendo que os crimes previstos no artigo 261 e respectivos parágrafos do Código Penal são de competência estadual a menos que seja constatada lesão a bens, serviços e interesses da União, que, traduzindo em miúdos, nada mais é do que colocar em risco o sistema de navegação aérea pois atribui-se perigo real e imediato a uma série de aeronaves, passageiros e tripulantes, ou seja, a coletividade.

No caso citado inicialmente, envolvendo a aeronave da Gol, havia um perigo real e imediato para outras aeronaves, pois um problema de controle de espaço e de navegação aérea foi prontamente constatado e dessa maneira houve atuação direta da Polícia e Justiça Federal.

Há inúmeros conflitos de competência julgados pelo STJ sempre considerando que a Justiça Estadual é a competente para atuação em casos de acidentes aeronáuticos que não geram danos potenciais generalizados e ostensivos.

Já em um caso de um avião colidir com um morro, durante mau tempo, por infração às regras de voo, não gera riscos a outros passageiros e sim demonstra apenas a imperícia, negligência ou imprudência do piloto que ocasionara tal acidente.

A mesma situação pode ser considerada para o caso do acidente envolvendo Marília Mendonça na cidade mineira de Caratinga (MG).

A competência de investigação dos fatos e de endereçamento da ação penal é estadual conforme determinou o STJ no CC 187.216/MG.

Não foi constatado até o presente momento nada que pudesse caracterizar um crime ocorrido a bordo ou até mesmo um perigo potencial e ostensivo a outros passageiros e tripulantes, nem mesmo para aqueles que operam com frequência no aeroporto de Caratinga.

Portanto, acidentes aeronáuticos, via de regra, devem ser investigados e processados pela Justiça Estadual e somente se transferirá essa competência para a esfera federal em caráter excepcional de casos muito específicos se houver lesão aos bens jurídicos tutelados pela União.

Publicado originalmente no Conjur