“Decisão dos EUA afronta o direito internacional”, diz Padilha após desistir da ida à ONU

Atualizado em 19 de setembro de 2025 às 20:30
O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, sério, olhando para o lado, de óculos, com bandeira ao fundo
O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, – Reprodução

O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, cancelou a viagem aos Estados Unidos após receber uma ordem de restrição de locomoção imposta pelo governo de Donald Trump. O episódio ocorreu às vésperas de reuniões internacionais e foi detalhado em carta enviada pelo brasileiro aos ministros da saúde dos países que integram a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).

As medidas adotadas pelo governo norte-americano impediam a presença de Padilha no encontro da OPAS em Washington. Além disso, as restrições também dificultavam sua circulação em Nova York, onde o ministro participaria, ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), da 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU).

Diante da situação, o Itamaraty acionou o comando da ONU em busca de intervenção. O gesto foi interpretado como tentativa de garantir a participação do ministro nas agendas multilaterais que estavam previstas para os próximos dias.

Itamaraty em dia ensolarado
Itamaraty – Reprodução

Confira a carta de Alexandre Padilha na íntegra:

A Organização Pan-Americana da Saúde surgiu, no começo do século passado, como uma resposta deste continente ao desafio de promover a saúde dos nossos povos.

Depois de terem enfrentado epidemias sucessivas de diversos tipos de doenças, os líderes de nossas nações perceberam que essa missão só seria alcançada por meio da cooperação fraterna, baseada na ciência, entre todos, pois as ameaças sanitárias ignoram fronteiras e não aceitam esperar a resolução de rivalidades regionais para impor seus efeitos devastadores.

Durante os mais de cem anos da instituição, o Brasil sempre foi um grande entusiasta desse espaço de diálogo, tendo papel na construção de medidas como a formulação de estratégias regionais de controle de vetores da febre amarela e da malária; de campanhas de vacinação de massa para a erradicação da varíola e da poliomielite nas Américas.

Além disso, o Brasil, reconhecido por sua política de acesso universal a antirretrovirais, influenciou debates e programas sobre uso estratégico de genéricos e contribuiu para eliminar doenças negligenciadas, como a rubéola, o tétano neonatal e, mais recentemente, a filariose linfática.

A ciência brasileira também sempre esteve ao lado da instituição: laboratórios brasileiros integram redes regionais da OPAS e servem como referência para outros países, e, com o apoio da organização, o Brasil foi escolhido como um dos centros para desenvolvimento de vacinas de RNAm na América Latina.

Hoje, a capacidade do meu país de seguir contribuindo para esses avanços está cerceada.

Fui informado, nesta quinta-feira (18/09), da postura do governo dos Estados Unidos de restringir a minha circulação no país a poucos quarteirões de Nova York, o que impede a minha ida a Washington, em flagrante desacordo com o Acordo de Sede.

O visto constitui condição indispensável para que eu possa representar, mais uma vez, o Brasil na próxima reunião do Conselho Diretor do organismo, a realizar-se entre 29 de setembro e 3 de outubro.

Trata-se de uma decisão arbitrária e autoritária, que afronta o direito internacional e prejudica a cooperação harmônica entre países soberanos.

Depois de ter cassado o visto da minha esposa e o da minha filha, de apenas dez anos de idade, o governo dos Estados Unidos impõe restrições inaceitáveis ao exercício da diplomacia brasileira. Pelos termos da autorização que recebi, teria exclusivamente o direito de circular em perímetro previamente definido, em Nova York, por ocasião da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas.

O efeito imediato das restrições que me foram impostas é impedir a plena participação do Brasil em órgãos das Nações Unidas sediados nos Estados Unidos, enquanto exercemos a presidência Pro-Tempore do Mercosul e dos BRICS e presidimos a Coalizão do G20 na Saúde.

Ao inviabilizar encontros bilaterais a nível ministerial com esses países, realizados fora do quadrante restrito, a medida interfere no avanço das discussões de pautas e projetos em comum.

A restrição que me foi imposta também compromete a velocidade das negociações com laboratórios internacionais, serviços hospitalares e instituições de pesquisa que buscam investir no Brasil e que podem fortalecer nossa capacidade de oferecer saúde de qualidade aos brasileiros.

Esses acordos são essenciais para ampliar e aprimorar o atendimento prestado pelo Sistema Único da Saúde (SUS), que hoje completa 35 anos. Maior expressão da solidariedade brasileira, ele é um exemplo mundial ao garantir, de forma universal e gratuita, atenção integral a 212 milhões de pessoas em um país de dimensões continentais.

Seremos privados ainda de anunciar mais um passo na colaboração brasileira para o Fundo Rotatório e o Fundo Estratégico da OPAS, que garantem vacinas e medicamentos oncológicos mais baratos para toda a América, em grande medida, graças ao poder de compra do nosso país que tem o SUS como o maior mercado público da região.

Além desses efeitos, essa proibição tenta impor ao Brasil a exclusão parcial de seus direitos, retirando-nos as prerrogativas garantidas aos Países Membros pelo Acordo de Sede com a ONU.

A nossa resposta a essa ofensa é: o governo do Brasil não renunciará, sob nenhum pretexto, à sua soberania, pois o povo do Brasil já ratificou, com suas escolhas recentes, o apreço pela democracia, pelas vacinas, pelo SUS e pelo programa Mais Médicos, que está sendo usado como justificativa para as restrições ao meu visto.

Os pretextos alegados para esse ato não têm qualquer amparo nem na realidade dos fatos nem no arcabouço legal que rege a relação entre os países, na medida em que tenta fabricar acusações infundadas e descabidas contra o programa Mais Médicos, criado em 2013.

Merecem repúdio decisões desse tipo, pois elas põem em xeque a experiência democrática daquele país. Ainda assim, faço questão de reiterar que esse não é o espírito único do povo e das instituições norte-americanas.

No contexto da Guerra Fria, a sociedade dos Estados Unidos acolheu o meu pai, exilado político pela ditadura brasileira, ainda que esta fosse, à época, aliada de Washington. Em razão desse exílio, só aos oito anos de idade pude conhecê-lo, juntamente com meus dois irmãos, ambos nascidos no exílio.

Esse espírito da sociedade dos Estados Unidos em prol do desenvolvimento e do humanismo também me deu uma série de amigos e de colegas cientistas e profissionais de saúde, com os quais partilho o sonho de um mundo mais igualitário na oferta ao cuidado que mitiga a dor e busca a cura para todos os indivíduos, sem levar em conta sua nacionalidade, sua etnia, seu credo e sua condição econômica.

Tenho certeza de que esse espírito não sucumbirá à sombra de obscurantismo e de negacionismo que paira sobre o país atualmente. País que deixou de ser referência em oferta de ajuda ao desenvolvimento, cooperação humanitária global e desenvolvimento de tecnologias em saúde, para condicionar qualquer cooperação à adesão subserviente à agenda política dos governantes do momento e seus apoiadores.

Nesse momento sombrio, reitero o inabalável compromisso do Ministério da Saúde do Brasil com a promoção da saúde, da ciência, da paz e da democracia, nas Américas e em todo o mundo. E não podemos concordar com nenhuma medida de enfraquecimento da OPAS e Organização Mundial da Saúde (OMS) pelo governo dos Estados Unidos.

Jessica Alexandrino
Jessica Alexandrino é jornalista e trabalha no DCM desde 2022. Sempre gostou muito de escrever e decidiu que profissão queria seguir antes mesmo de ingressar no Ensino Médio. Tem passagens por outros portais de notícias e emissoras de TV, mas nas horas vagas gosta de viajar, assistir novelas e jogar tênis.