Defesa do voto impresso é uma manobra diversionista. Por José Dirceu

Atualizado em 11 de agosto de 2021 às 8:48
Manifestação bolsonarista pelo voto impresso.
Foto: Evaristo Sá/AFP

Por José Dirceu

Enquanto as Forças Armadas pressionam abertamente a Câmara dos Deputados e o Senado Federal para a aprovação do voto impresso, dando sequência a vários pronunciamentos de militares da ativa –o que é ilegal e inconstitucional e representa, na prática, uma ruptura da legalidade democrática–, assistimos a reuniões de comandantes militares e ministros do STF.

Isso causou perplexidade entre os democratas e provocou suspeita de busca de saídas fora da Constituição, como aconteceu em nossa história quando de intervenções inconstitucionais das Forças Armadas. Basta lembrar o Ato Adicional que instituiu o parlamentarismo quando do golpe militar de 1961, que visava a impedir a posse legal e constitucional de Jango Goulart eleito diretamente –é bom que se diga– vice-presidente de Jânio Quadros, que renunciou ao cargo em agosto daquele ano.

Os pronunciamentos de militares –a nota do comandante da Aeronáutica apoiada pelo da Marinha e as duas notas conjuntas do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica –com um custo cada vez maior para sua imagem e reputação– provocaram repulsa na sociedade e fizeram com que fosse lançada uma nota de empresários e intelectuais em defesa da democracia e da realização de eleições presidenciais em 2022.

A escalada golpista, que não necessariamente termina com um golpe militar clássico, tem como pretexto o voto impresso, cujo único objetivo é tumultuar o cenário político e impedir o calendário e o processo eleitorais de 2022. Por uma única razão: tudo indica que Jair Bolsonaro não será reeleito e o provável vitorioso na urnas deverá ser Luís Inácio Lula da Silva. Fosse outro o favorito –principalmente, se apoiado pela direita liberal– não estaríamos vivendo essa crise.

No fundo, o que se assiste é uma aberta intervenção militar no processo político visando a manter o status de poder político conquistado pelos militares com a eleição de Jair Bolsonaro. Sem falar das regalias e privilégios que lhes foram concedidos regiamente pelo atual governo.

Na defesa de seus privilégios e do papel auto-assumido de fiadores da pátria, os militares chegaram ao desplante de organizar um desfile nesta 3ª feira (10.ago.2021) diante do Congresso Nacional em Brasília com a presença de Bolsonaro e blindados da Marinha, quando a Câmara dos Deputados votaria o PL do voto impresso. Há anos manobras militares são realizadas em Formosa (GO) sem que jamais tenha sido aventada a hipótese de se convidar o presidente da República para um desfile militar na Esplanada dos Ministérios.

O que vem com o Distritão

Paralelamente, como pano de fundo e tentativa de se evitar as eleições de 2022 dentro das regras atuais e definidas pela Constituição, temos a aprovação do chamado Distritão na comissão especial que analisa a PEC da minirreforma eleitoral. Sua aprovação implica mudanças radicais na própria eleição do presidente da República, dos governadores e prefeitos, com a retomada das coligações proporcionais partidárias.

Nem é preciso um exercício analítico longo para nos darmos conta da tragédia democrática que representa o Distritão. Basta citar que os votos dados aos candidatos não eleitos serão desprezados assim como os direcionados em excesso aos eleitos, computando-se apenas os dos mais votados em cada Estado ou município. Além disso, a proposta acaba com o voto de legenda, o que na prática significa o fim dos partidos políticos.

Soma-se a isso o fato de vivermos uma realidade marcada por emendas impositivas e o uso e abuso da máquina dos governos. Como resultado, teremos o domínio absoluto das eleições pelo poder econômico e pelos atuais congressistas, o que pavimenta o caminho para a eleição de deputados alinhados com o governo e dispostos a qualquer medida constitucional para fraudar a vontade popular no caso de uma derrota de Jair Bolsonaro.

Não há limites para o casuísmo e não se esconde o objetivo de evitar a vitória desse ou daquele candidato, de reeleger o atual mandatário. A relatora da PEC, Renata Abreu, deputada por São Paulo e presidente do Podemos, propôs –e a comissão aprovou– uma mudança radical na forma de eleição do presidente, dos governadores e prefeitos. No lugar da eleição em 2 turnos, teremos um sistema de turno único em que o eleitor vota em até 5 candidatos ao cargo executivo, em ordem decrescente de preferência.

Pela proposta seria eleito o candidato que conseguisse a maioria absoluta das primeiras escolhas do eleitor. Caso isso não aconteça, o candidato com menos indicações seria eliminado da apuração e os votos dados a ele transferidos para a escolha seguinte.

Nem vale a pena descrever toda a proposta. Além de proporcionar a fraude evidente da vontade popular, propõe a criação de partidos regionais e traz medidas ainda de maior flexibilização da fidelidade partidária para aumentar o pântano da política. Na PEC da minirreforma partidária salvam-se apenas o dispositivo para aumentar os recursos do fundo eleitoral para mulheres e negros e a adoção do princípio da anualidade para as decisões da Justiça eleitoral.

Uma estratégia para confundir

Enquanto lutamos contra a proposta do voto impresso, caminho natural para a contestação dos resultados eleitorais (opor-se ao voto impresso não significa ser contra a revisão do controle social e partidário das urnas eletrônicas e muito menos rejeitar a ampliação do número de urnas auditadas), o verdadeiro objetivo do governo e dos partidos aliados é a aprovação do Distritão, combinado a um atalho para violar a vontade popular: a mudança do sistema de eleição de presidente e dos governadores e prefeitos.

A nossa experiência política e nossa história recente estão repletas de pronunciamentos e tentativas de golpes militares começando pelo do Estado Novo, em 1937, pela destituição de Getúlio Vargas em 1945 pelo Estado Maior do Exército, a tentativa de golpe sob o pretexto de que Getúlio não conseguiria maioria absoluta nas eleições de 1950, o que não era uma exigência constitucional.

A eles se somam o golpe de agosto de 1954 que levou Getúlio ao suicídio e somente foi abortado pela revolta e indignação popular pela morte de seu líder; a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek e de seu vice, Jango Goulart, fracassada pelo contragolpe comandado pelo então ministro da Guerra general Henrique Lott; as tentativas de insurreições e levantes na FAB, em 1957, que fracassaram e seus líderes receberam a anistia de JK; e, por fim, a tentativa de impedir a posse de Jango em 1961, que enfrentou a resistência popular liderada por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul. Depois de tantos fracassos, veio o vitorioso golpe de 1964, que nos levou a uma ditadura de 21 anos.

Espero que tenhamos aprendido a lição da história. Ela nos ensina que precisamos enfrentar as tentativas golpistas, seja com golpes clássicos ou travestidos em reforma eleitoral para fraudar a vontade popular, com a unidade e a mobilização de todos democratas e da firme oposição da maioria do Congresso que será, sem nenhuma sombra de dúvida, a 1ª vítima da ruptura democrática. Ocupar as ruas do Brasil é a única forma de deter a escalada golpista bolsonarista. Ditadura nunca mais.