Delação do ex-presidente da Fecomércio tem graves indícios de abuso de autoridade. Por Marcelo Weitzel

Atualizado em 13 de outubro de 2020 às 21:09

Publicado originalmente no Consultor Jurídico

Por Marcelo Weitzel Rabello de Souza

Orlando Diniz, Ex-presidente da Fecomércio – Divulgação

Uma discussão importante, no contexto atual, que veio à tona recentemente por ocasião da operação envolvendo a Fecomercio, em decorrência de delações do ex-presidente Orlando Diniz, diz respeito ao tema das “delações dirigidas” ou “delações direcionadas”.

Segundo a ConJur, uma parte da delação foi construída por membros do MPF. A denúncia do site é no seguinte sentido: “Vídeos de trechos da delação de Orlando Diniz mostram que o Ministério Público Federal dirigiu as respostas do delator. Em muitos momentos, é a procuradora (….) quem explica a Diniz o que ele quis dizer. Quando o delator discorda do texto atribuído a ele, os procuradores desconversam, afirmando que vão detalhar nos anexos. Diniz diz que os contratos fechados com o escritório de Cristiano Zanin foram ‘legais’. A procuradora o convence de que ele deve dizer que foram ilegais. ‘Foram formais, mas ilegais’, ela dirige. Diniz concorda. Mais à frente, ele diz para ela colocar o que quiser: ‘Fica a seu critério’. Quando, a certa altura, Diniz corrige a ‘informação’ de que a mulher de Sérgio Cabral, Adriana Ancelmo, faria parte do ‘núcleo duro’ do suposto esquema, um procurador chega a intimidar o delator, insinuando que ele está tentando proteger Ancelmo. Em determinado momento, Diniz afirma: ‘essa frase parece que ficou meia solta’. A procuradora responde: ‘Eu aproveitei ela do seu anexo’ — o que mostra que ela reescreveu a delação. Quando os procuradores pedem para Diniz detalhar o retorno dos escritórios sobre os serviços jurídicos prestados, o procurador choca-se com o delator: ‘Ou todos escritórios fizeram a mesma coisa ou nenhum deles fez nada’, diz, bancando uma contradição lógica. ‘Mas a gente detalha isso nos anexos de cada escritório’, tergiversa o procurador, o que é feito sempre que o delator discorda do texto atribuído a ele”.

O que importa ressaltar aqui é que, se totalmente correta a reportagem da ConJur (diversas circunstâncias podem induzir um jornalista em erro), estamos diante de fatos graves. Como se sabe, a colaboração precisa ser voluntária (Lei 12.850/13, artigo 4º, caput e §6 ) e sobre fatos relacionados ao processo (não podem ser fatos públicos e notórios, ou já divulgados na mídia, por exemplo). Nesse contexto, preceitua a Lei 13.869/2019 (contra o abuso de autoridade) que constitui crime constranger detento ou preso “mediante redução de sua capacidade de resistência” a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro. Além disso, também constitui abuso de autoridade proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito, qual seja, o direcionamento de uma delação.

Obviamente, estou me referindo apenas à Lei Contra o Abuso de Autoridade, pois poderia também mencionar outros possíveis crimes, tais como estelionato e fraude processual, ilícitos em tese igualmente indicados na contundente narrativa da reportagem da ConJur, tudo a justificar apuração aprofundada pela instância competente, seja na seara da improbidade administrativa, seja na esfera criminal, seja, finalmente, quanto à esfera disciplinar.

A Lei Contra o Abuso de Autoridade foi muito questionada quanto aos seus reais propósitos, mas forçoso reconhecer seus méritos no tocante à prevenção e repressão de distorções de autoridades públicas. Trata-se de uma Lei que deve ser implementada, pois do contrário cairá em descrédito. Sua “ratio” é o aprimoramento das instituições republicanas. Da mesma forma, as leis disciplinares servem para coibir desvios de finalidade e de poder dos agentes públicos.

Não se está a dizer que os procuradores, no caso do manejo das delações envolvendo a Fecomercio, praticaram abuso de autoridade ou outros crimes já mencionados, pois é prematuro chegar à conclusão semelhante. Todavia, ao que parece, se procedente a reportagem da ConJur, há indícios de ilicitude comportamental a ser apurada, na medida em que inaceitável o procedimento de direcionamento de colaborações premiadas. Um mero indicativo nesse sentido autoriza abertura de investigações.

O colaborador não tem o direito de mentir nem o de distorcer fatos. O colaborador não pode encampar versão alheia como própria.

Em tese, o comportamento retratado na citada reportagem pode amoldar-se a tipos penais e administrativos proibitivos, além de ajustar-se à Lei 8.429/92. A própria matéria do aludido sítio jurídico é, por si só, uma notitia criminis e também um material para impulsionar uma necessária apuração, seja no âmbito judicial e/ou administrativo, a fim de se verificar o alcance e a origem dos fatos ali narrados.

Eventual fiscalização de atos em tese ilícitos pode ser útil para depurar e prevenir possíveis excessos dos membros dos ramos da instituição, além de servir para restabelecer uma verdade a favor dos integrantes do MPF que ali atuaram, caso tenham agido corretamente. A investigação, quando realizada em profundidade, tem um cunho pedagógico.

No caso, cumpre registrar que uma parcela dessas delações já foi rejeitada pelo STF, enquanto muitas outras chanceladas pelo Judiciário, valendo apurar, no que se refere as rejeitadas, a que título e sob que circunstâncias foram colhidas também, haja vista o contido no sítio da ConJur, para que não pairem dúvidas sobre a conduta dos integrantes do MP.