Delegado do caso Amarildo critica chacina e detalha tática “troia” usada no Rio

Atualizado em 3 de novembro de 2025 às 23:30
O delegado aposentado Orlando Zaccone, da Policia Civil do RJ, de perfil, de boné, sério, em foto sombreada
O delegado aposentado Orlando Zaccone, da Policia Civil do RJ – Eduardo Anizelli/Folhapress

O delegado Orlando Zaccone, da Polícia Civil do Rio de Janeiro, tornou-se conhecido em todo o país após atuar em um dos episódios mais marcantes da segurança pública no estado: o desaparecimento e morte do pedreiro Amarildo de Souza, na Rocinha, em 2013. Com informações da Folha de S.Paulo.

Na época, ele participou de investigações que apontaram tortura e ocultação de cadáver, além de relatos de suborno, manipulação de testemunhas e forjamento de provas por policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). A acusação contra Amarildo de que ele seria traficante ganhou repercussão pública, mas foi desmentida pelos documentos e depoimentos analisados pelo delegado.

“Queriam construir Amarildo como traficante para legitimar o seu desaparecimento e a sua execução, com uma tentativa de fraude de um inquérito que apurava o tráfico. Porque se Amarildo fosse identificado como traficante, o seu desaparecimento e morte não seria crime, seria uma função normal da polícia no Rio de Janeiro”, relembra Zaccone.

O caso trouxe projeção ao delegado, que passou a estudar o tratamento jurídico dado a mortes em operações policiais e a maneira como essas ocorrências são classificadas pelos órgãos de investigação.

Mais de dez anos depois, Zaccone aponta relação com a operação realizada nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, considerada a mais letal da história do estado, com pelo menos 121 mortos. Segundo ele, a ação policial foi planejada para ocorrer de maneira estratégica, com o objetivo específico de atingir homens identificados como integrantes do tráfico de drogas.

O delegado afirma que essa dinâmica é conhecida informalmente como “troia”, referência ao Cavalo de Troia da mitologia grega.

“Troia é uma técnica de se preparar homicídios pela polícia. A polícia entra na comunidade com antecedência e espera o momento de fuga de traficantes para matar. Por isso que a polícia do Rio chama traficante de ganso, por causa daquela brincadeira de tiro ao alvo. Então era isso que eles queriam fazer, matar os traficantes em fuga”, afirma.

Corpos enfileirados após operação da polícia no Rio
Corpos enfileirados após operação da polícia no Rio – Tomaz Silva/Agência Brasil

O governo estadual e os comandos das polícias, porém, negaram que tenha ocorrido emboscada e declararam que o deslocamento da tropa para áreas de mata buscou reduzir o risco de tiroteios em regiões residenciais.

De acordo com Zaccone, esse tipo de atuação é historicamente associado à simulação de confronto, permitindo que mortes sejam atribuídas à legítima defesa. Ele cita, como exemplo, a chamada Chacina do Borel, em 2003, quando policiais entraram no morro antes da operação principal.

Segundo o delegado, naquele dia a “boca” — termo usado para designar pontos de venda de drogas — estava inativa, e vítimas sem vínculo com o crime foram baleadas. “Às vezes dá errado, em vez de matarem o ganso, matam um comerciante, um estudante, aí o troia vai por água abaixo. Mas, se [os mortos] fossem traficantes, ficava na conta da operação, foi troca de tiro,” relata.

Na avaliação do delegado, a operação atual revelou novas dinâmicas no emprego dessa tática. “A novidade agora foi uma troia oficial, anunciada. Vivemos o absurdo de assassinatos dentro da lei. E aí é que vem o debate: existe ou não autorização de se matar pessoas que estão portando a arma? Porque isso legitimaria a ação. Só que hoje, do ponto de vista legal, não há essa autorização, mas ela existe nas formas jurídicas”, declara.

A expressão “formas jurídicas”, segundo Zaccone, refere-se ao histórico de arquivamentos de inquéritos envolvendo mortes atribuídas ao tráfico.

O delegado estudou o tema em sua tese de doutorado em ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF), defendida em 2013. Na pesquisa, ele analisou 300 pedidos de arquivamento feitos pelo Ministério Público entre 2003 e 2009, referentes aos chamados “autos de resistência”. “Fui estudar qual era o fundamento dos promotores para caracterizar a legítima defesa.

Para a minha surpresa, diziam respeito à condição do morro. Ou seja, no pedido de arquivamento, escrevem que, conforme os antecedentes criminais, o morto respondeu por tráfico, que o fato ocorreu em comunidade favelada onde constantemente tem troca de tiros entre polícia e bandido.”

Com base nos documentos, Zaccone concluiu que, no Rio, mortes de pessoas identificadas como traficantes não são tipificadas como crime e são homologadas pelo sistema jurídico. Em sua análise acadêmica, o Estado brasileiro considera essas mortes amparadas pela lei, configurando uma política pública direcionada ao enfrentamento armado.

No Código Penal, a legítima defesa funciona como excludente de ilicitude, retirando a configuração criminal da ação quando há repulsa a agressão injusta.

“Não existe outra forma de legitimar uma ação letal que não seja pela legítima defesa. Um cara que está fugindo, mas porta um fuzil, do ponto de vista jurídico, se ele não atirar, não se pode alegar legítima defesa. Mas aqui no Rio, desde a época do [ex-governador Wilson] Witzel, criou-se o debate: se está portando uma arma, pode ser morto. Porque querem avançar naquilo que a legislação hoje não autoriza.”

Ele acrescenta que o tema passou a ser politizado, com justificativas pautadas pelo medo social de armamentos de guerra. “E aí o debate deixa de ser jurídico e passa a ser político, porque a população tem medo de pessoas armadas, ainda mais de fuzil. Então você legitima a execução de pessoas.”

O delegado também questiona a divulgação de estatísticas de apreensões. “Não foi por menos que eles apreenderam aquela quantidade imensa de fuzis [93]. E tem que ser questionado se aqueles fuzis todos foram mesmo apreendidos nesta operação.”

Fundador do movimento Policiais Antifascismo, formado por profissionais da segurança pública que se opõem a políticas repressivas tradicionais, Zaccone aposentou-se em 2023. Atualmente, atua como advogado criminalista e preside a Comissão Especial da Segurança dos Direitos dos Policiais Civis e Militares da OAB-RJ.

Em 2017, ele decidiu disputar eleições pelo PSOL, concorrendo para deputado estadual em 2018, sem vitória. Depois ingressou no PDT, disputou vaga de deputado federal em 2022 e novamente não se elegeu. O delegado segue filiado ao partido, mas declarou que não pretende concorrer em 2026.

O governo fluminense e as polícias afirmaram que a operação foi legal e planejada de maneira a diminuir riscos para moradores. “Foi pensado para que a população sentisse o mínimo possível”, disse o governador Cláudio Castro em entrevista coletiva.

O secretário da Polícia Militar, coronel Marcelo Menezes, afirmou que equipes do Bope se posicionaram em áreas elevadas da Serra da Misericórdia, cercando suspeitos em direção à mata, onde havia outras unidades aguardando.

“O que a gente fez de diferente nessa operação foi a incursão de homens do Bope na área mais alta da montanha, (…) criando o que a gente chamou de muro do Bope, ou seja, policiais incursionados nessa área, fazendo com que os marginais fossem empurrados”, declarou.

O secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, negou responsabilidade por mortes com sinais de degola e disse que inquéritos foram abertos por fraude processual devido à remoção irregular de corpos. “Quem disse que foi a polícia que cortou a cabeça dele? Nós instauramos inquérito para apurar o crime de fraude processual pela remoção indevida e ilegal desses corpos”, afirmou.

Ele também declarou que veículos usados para transportar cadáveres eram roubados e que pode ter havido lesões adicionais nesse percurso. “E justamente eles podem até ter feito isso para chamar a atenção da imprensa.”

Segundo Curi, o governo utiliza horários, locais e características de vestimentas para afirmar que civis mortos tinham envolvimento com tráfico. Já o comandante do Bope, tenente-coronel Marcelo Corbage, defendeu a atividade da tropa.

“Aqueles que falam que houve execuções são pessoas ou de má-fé ou que são ignorantes. Porque as imagens falam por si só. Nós nos confrontamos com narcoguerrilheiros que estavam muito preparados para a guerra. O número de fuzis, carregadores e munições apreendidos fala por si só”, disse à TV Band.

Jessica Alexandrino
Jessica Alexandrino é jornalista e trabalha no DCM desde 2022. Sempre gostou muito de escrever e decidiu que profissão queria seguir antes mesmo de ingressar no Ensino Médio. Tem passagens por outros portais de notícias e emissoras de TV, mas nas horas vagas gosta de viajar, assistir novelas e jogar tênis.