Denúncia do MP por injúria racial expõe um padrão: o racista se esconde atrás da piada. Por Daniel Trevisan

Atualizado em 30 de novembro de 2019 às 9:14
Eunice Cides de Oliveira: Foto: reprodução da TV

O Ministério Público do Rio de Janeiro denunciou por injúria racial um homem que humilhou duplamente a colega Eunice Cides de Oliveira: ele disse que gostaria que a escravidão voltasse para que ela fosse obrigada a fazer sexo com ele.

“Teria que fazer o que eu quisesse. Não teria conversa, você teria que fazer sexo comigo mesmo se não quisesse”, disse, na frente de testemunhas.

Ao mesmo tempo em que falava, segurou no braço dela e simulou ato sexual e chicotadas. Eunice foi desrespeitada por ser negra e por ser mulher.

Na hora, respondeu algo como: “sério que você vai falar isso mesmo? Pára que eu não quero ouvir isso”

Em seguida, relatou o caso aos chefes e a resposta, num primeiro momento, foi típica de ambientes corporativos onde o racismo e o assédio sexual são tolerados.

Queriam que ela fosse conversar com o agressor. “Não tenho condição nenhuma”, respondeu. E é evidente que não tinha.

Provavelmente ficaria tudo por isso mesmo, se ela não tivesse procurado a polícia, com provas.

Além das testemunhas, entregou cópia de uma conversa por WhatsApp em que o chefe disse: “Filha da puta!! Chata pra caralho!!!”

A mensagem, acompanhada de áudios, era destinada a outro funcionário da empresa, mas, por engano, foi enviada para ela.

Sabe-se pouco do agressor. O nome dele é Sérgio Simões. Tem 64 anos, é branco e tinha um bom emprego — por causa da reação de Eunice, foi demitido, juntamente com o chefe.

Sérgio trabalhava Club Med, uma rede de hotéis de luxo espalhados pelo mundo todo, chamados Villages, que têm como diferencial o lazer oferecido em seus hóspedes.

Uma curiosidade: o Med nasceu da iniciativa de um empresário belga que queria proporcionar lazer a judeus egressos dos campos de concentração, alvos do ódio racista.

Está hoje sob controle de uma grande corporação de hotelaria, o grupo francês Accor.

A chave para entender a ofensa está na forma como o racismo é praticado na maior parte das vezes: como se fosse brincadeira.

Note-se o que Eunice disse ao descrever a cena:

“Ele continuava rindo, como se fosse brincadeira”

Esse é o padrão, que precisa ser rejeitado, mas, quando julgou um caso parecido, a primeira turma do Supremo Tribunal Federal rejeitou enquadrar o agressor — no caso, o então deputado federal Jair Bolsonaro.

Em 2017, quando estava em pré-campanha para presidente, ele fez uma palestra no clube Hebraica (que ironia do destino), no Rio de Janeiro, em que, falando de uma visita que fez a um quilombo em Eldorado Paulista, atacou:

“O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada, eu acho que nem pra procriador servem mais”.

O público presente, presumivelmente judeus, riu, e muitos ainda gritaram: “Mito, mito, mito”

Denunciado por racismo, Bolsonaro foi absolvido, com um voto decisivo de Alexandre de Moraes.

“No caso em questão, apesar da grosseria, da vulgaridade, não me parece ter extrapolado limites da sua liberdade de expressão qualificada. Essas palavras devem analisadas pelo eleitor, pelo cidadão. Está claro que foram críticas a políticas do governo e não um discurso de ódio.”

Bolsonaro se elegeu com o discurso de que, se se elegesse, seria contra o “politicamente correto”.

Nos primeiros meses de governo, seu público captou mensagem — ou há alguma dúvida de que o sujeito que humilhou a colega no Club Med seja bolsonarista?

Não é discurso de ódio, de menosprezo pelo outro, de humilhação, é sempre brincadeira.

E se alguém reclama, como fez Eunice, tem sempre um chefe para sentenciar: “Chata pra caralho”.

Eunice, ao falar do caso para a reportagem da Globonews, afirmou:

“A gente, como negro, já sai de casa esperando: ‘Não, pode ser que aconteça alguma coisa. Então, eu tenho que responder. Eu tenho que fazer alguma coisa’. Infelizmente, esta é a realidade ainda hoje, porque, se aconteceu comigo, significa que está acontecendo em todos os lugares.”

E acontece, Eunice, e tem que gente que não reage, para não ser considerada “chata pra caralho”.

Quando reage, como fez Eunine, o agressor se esconde. No depoimento à polícia, negou o crime e mandou avisar o repórter que o procurou que resolverá a questão na justiça.

Bolsonaro se livrou. Quem sabe ele não tenha a ventura de ter pela frente um juiz como Alexandre de Moraes.

Bolsonaro na Hebraica: ele se livrou