Deputado do RN administra grupos de WhatsApp que promovem falso tratamento precoce contra Covid-19

Atualizado em 14 de maio de 2021 às 19:45
Oftalmologista e deputado federal, Dickson mantém canal de Youtube onde divulga chamado “tratamento precoce”

Originalmente publicado em AGÊNCIA PÚBLICA

Por Ethel Rudnitzki

“Bom dia! Alguém pode, por favor, me informar um protocolo para minha filha de 15 anos? Todos na casa dela estão muito gripados e o padrasto dela perdeu o olfato ontem”. “Boa tarde. O que fazer se tiver contato com pessoa que testou positivo?”. “Oi grupo, boa tarde. Ontem eu passei o dia espirrando e com dor de cabeça. Hoje amanheci vomitando. Vocês acham que pode ser covid?”.

Perguntas como essas são comuns em grupos de WhatsApp que promovem o tratamento precoce contra a covid-19. A Agência Pública acompanhou por um mês oito grupos de WhatsApp que promovem o tratamento precoce. Desses, cinco são administrados pelo deputado estadual e médico oftalmologista Albert Dickson (PROS-RN). O político possui um canal no Youtube e uma página no Facebook, onde defende o uso de medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento de coronavírus, além de realizar atendimentos por WhatsApp.

Nos grupos são enviadas receitas médicas e protocolos para uso de medicamentos sem eficácia comprovada, como ivermectina, hidroxicloroquina, azitromicina, bromexina e suplementos vitamínicos. Tratamentos ainda mais arriscados como nebulização com cloroquina também são recomendados. Também circulam mensagens conspiracionistas sobre a pandemia, questionamentos sobre a eficácia das vacinas e rejeição ao uso de máscaras.

A Pública apurou que o telefone celular de Dickson consta como administrador dos grupos de WhatsApp “Ivermectina é Vida”, “Ivermectina Salva”, “Trat Precoce VS RS” e dois grupos diferentes com o mesmo nome: “Covid/Tratamento Precoce”. Juntos, os grupos somam mais de 850 membros.

A reportagem ainda acompanhou os grupos “Tratamento Precoce”, “Ivermectina São Paulo” e “Salvando Vidas/Covid”, cujos administradores não foram identificados.

O administrador

“Ivermectina: porque eu uso?” é o título de um dos vídeos mais assistidos do canal de Albert Dickson no Youtube, que hoje conta com mais de 200 mil inscritos.

Ao lado de sua esposa, a também oftalmologista e deputada federal, Carla Dickson (PROS-RN), o político grava vídeos recomendando o uso de Ivermectina – remédio utilizado no combate de verminoses – no tratamento da COVID-19 entre outros medicamentos sem eficácia comprovada.

Por propagar informações consideradas falsas sobre a pandemia, o casal teve 12 vídeos removidos do Youtube no início do ano, mas continua na ativa.

Dickson e a esposa começaram a postar no Youtube em 2017, mas só ganharam popularidade no ano passado, quando começaram a fazer vídeos sobre tratamento precoce. Ao final dos vídeos, o médico disponibiliza seu número de telefone para consultas por WhatsApp. Segundo reportagem da BBC, o oftalmologista pede inscrições no seu canal em troca de atendimento médico.

O casal de médicos também mantêm canal no Telegram, onde enviam links de suas lives e vídeos para mais de 2,2 mil inscritos.

Fora das redes sociais, os oftalmologistas tentam fazer com que o tratamento precoce seja ampliado no Brasil. O deputado estadual apresentou dois projetos de lei na Assembleia Legislativa de Alagoas: um determina a “disponibilização gratuita de kits de medicamentos com os remédios hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina” pelo SUS  e o outro a distribuição por planos de saúde.

Na Câmara, a deputada Carla Dickson foi responsável por promover um debate virtual com médicos, pesquisadores e políticos em julho do ano passado sobre o uso precoce de cloroquina e ivermectina no tratamento contra coronavírus.

Evangélicos, os oftalmologistas também lutaram pela abertura de igrejas durante a pandemia. Em seus vídeos, Dickson se afirma contra o fechamento do comércio para contenção da pandemia.

A reportagem questionou Albert e Carla Dickson sobre a participação nos grupos de WhatsApp e a defesa de tratamentos ineficazes contra a Covid-19, mas não obteve resposta até a publicação.

Compartilhamento de receitas

Apesar de realizar atendimento por WhatsApp, nos grupos Dickson não costuma  responder mensagens ou interagir. Seu número encaminha links para suas lives e postagens no Facebook, Instagram e Youtube sobre tratamento precoce.

No entanto, membros dos grupos indicam aos outros que entrem em contato com o oftalmologista por mensagens privadas para atendimento personalizado. Integrantes dos grupos relatam que já foram atendidos pelo médico e até o agradecem publicamente.

Também circulam nos grupos receitas de medicamentos com carimbo e assinatura em nome do médico.

A reportagem teve acesso a quatro receituários com a assinatura de Dickson que foram compartilhados pelo WhatsApp no último mês, direcionados a pacientes diferentes e em datas diversas.

Todas elas indicavam o uso da Ivermectina em diferentes dosagens e também outros remédios como os hormônios Dutasterida e Espironolactona, e suplementos vitamínicos. Algumas receitas continham recomendação de medicamentos para suposta prevenção da doença, outras recomendavam medicação para durante e após a infecção por Covid-19.

“São medicamentos que não têm nenhuma recomendação para uso em infecção viral”, avalia o farmacêutico e doutor em epidemiologia, Julio Ponce. Ele ainda chama a atenção sobre as receitas conterem diferentes orientações para pessoas com pesos e sexos diferentes. “Parece ser uma receita não personalizada, que não está sendo feita para um paciente, porque o médico que escreveu não sabe nem se é do sexo masculino ou feminino.”

Os receituários são emitidos com o papel timbrado do Instituto da Visão, consultório de oftalmologia em Natal onde Dickson atende, e terminam com expressões religiosas como “Deus seja exaltado. Leia a Bíblia”.

Receituários e protocolos de outros médicos também são compartilhados nos grupos. A grande maioria leva o papel timbrado de hospitais e planos de saúde, mas os nomes dos médicos estão ocultos.

Médicos de WhatsApp

A Pública ainda identificou a presença de outros profissionais de saúde nos grupos analisados. Um deles é o médico recém-formado – ainda sem especialização – Alef Lamark. Ele é integrante de seis dos oito grupos analisados.

Seu número consta como administrador do grupo “Covid/Tratamento Precoce” ao lado de Albert Dickson, e de outras três pessoas não identificadas.

Assim como Dickson, Lamark não interage nos grupos, mas divulga seus vídeos e lives no Youtube sobre tratamento precoce. “Esses dois remédios matam o coronavírus” é o título de um dos vídeos do seu canal no qual ele defende o uso de bromexina e bromelina.

Um print de um vídeo da ultrassonografista Lucy Kerr no qual ela indica um protocolo para prevenção e tratamento de Covid com o uso de ivermectina também circulou em cinco dos oito grupos analisados. Outra mensagem que viralizou é uma lista com nomes e contatos de médicos defensores do tratamento precoce que oferecem atendimento remoto e gratuito. Boa parte deles são ligados ao movimento Médicos Pela Vida, responsável por publicar anúncios favoráveis ao uso de cloroquina em jornais de grande circulação. Reportagem do Estadão mostrou que o site do grupo está ligado a empresa que fabrica Ivermectina.

Procurados, Alef Lamark e os outros médicos cujos conteúdos foram divulgados em grupos pró-tratamento precoce não responderam.

“Sou prova de que esses medicamentos funcionam”

Boa parte dos participantes dos grupos são pessoas leigas que usaram os medicamentos por conta própria.

Um exemplo: no dia 24 de abril, chegou um pedido de “ajuda” no grupo “Ivermectina Salva”. Um rapaz cujo pai estaria com Covid-19 reclamou do atendimento em hospital particular paulista. “O médico não deu nem um antibiótico para ele. Isso pra mim é estranho”, reclamou, perguntando se poderia dar para o pai, diabético e hipertenso, os medicamentos receitados no grupo. “Não sou médica, sou uma pessoa comum, mas posso repassar os protocolos do grupo”, respondeu um número identificado como “Angelita”. Em seguida, ela encaminhou algumas imagens com protocolos para tratamento precoce. “Às vezes, nós, como pessoas que já tivemos [covid], podemos orientar”, justificou.

Angelita participa de quatro dos oito grupos analisados e é uma das usuárias mais ativas. No grupo “Covid/Tratamento Precoce”, ela compartilhou sua experiência tratando da sua filha com ivermectina e outros medicamentos e ofereceu ajuda a outros membros do grupo. “Mesmo não sendo médica sei o quanto dói a dor de um filho na gente e sempre que precisar pode me chamar, pode me considerar uma amiga! Quem precisar, se eu souber e puder vou ajudar.”

“Sou prova de que esses medicamentos funcionam”, dizia uma mensagem de um número identificado como “Márcia Oliveira” no grupo Covid/Tratamentos”. Ela diz ter se curada da covid usando colchinina e hidroxicloroquina recomendadas por um médico que a atendeu remotamente.

Para Ponce, por trás dessas recomendações de medicamentos via WhatsApp há um grande risco. Ele explica que as doses recomendadas de ivermectina no chamado “tratamento precoce” costumam ser muito acima do usual para o medicamento no combate a verminoses. “O que está acontecendo é que as pessoas estão se colocando em risco sem necessidade e tomando uma dose muito acima de qualquer protocolo autorizado para verminose. É aí que o medicamento se torna arriscado”, alerta.

Entre os riscos envolvidos no alto consumo da ivermectina estão problemas hepáticos. “Nosso fígado é responsável por processar todas as substâncias estranhas que passam no nosso corpo. Quando a gente coloca uma quantidade muito grande de substâncias estranhas, ele fica sobrecarregado”, explica Ponce.

Um integrante do grupo “Covid/Tratamento Precoce” tentou alertar sobre esse risco no uso da ivermectina, mas foi mal recebido. “Pessoal, tem um vídeo ali explicando que a ivermectina é super segura. Tem muitos que ainda dão atenção à mídia podre”, respondeu outra integrante.

Os grupos reagiram da mesma maneira negacionista à morte do ator Paulo Gustavo por Covid-19. “Eles negaram tratamento precoce. Sendo o companheiro médico! Foi suicídio e assassinato por pura ideologia”, publicou na ocasião um membro do grupo “Ivermectina Salva”.

Anti-vaxxers

Membros dos grupos no Whatsapp também questionam os únicos métodos eficazes de combate à pandemia, como a vacinação e o uso de máscaras.

“Era para eu ter ido na sexta tomar a vacina da astrazeneca… desisti”, confessou um número no grupo “Ivermectina Salva”. “Estou com muito receio. Metade de mim quer e o outra tem medo”, continuou. “Metade de mim diz pra não tomar a outra metade também. Daqui uns dois anos quem sabe teremos uma vacina eficiente e segura, prefiro a profilaxia, mas você decide o que é melhor pra você”, respondeu outra integrante do grupo. “Eu não tomo nenhuma, ninguém caiu a ficha ainda”, publicou outra pessoa.

Há também relatos de pessoas que tiveram efeitos colaterais às vacinas ou se infectaram mesmo assim. “Minha vizinha aqui tomou a vacina e depois de contaminada com o vírus veio a óbito”, alertou um dos usuários.

Também circulam fake news sobre vacinas e o uso de máscaras. Uma imagem compartilhada dizia que elas poderiam causar “privação de oxigênio e envenenamento por CO2”, o que já foi desmentido por agências de checagem.