Deputados aprovam “homeschooling” e RS poderá ser 1º estado a autorizar modalidade

Atualizado em 10 de junho de 2021 às 13:21

Publicado no Brasil de Fato

Parlamentares contrários ao projeto destacam que no homescholling a criança e o adolescente ficam completamente isolados – Imagem de Steven Weirather por Pixabay

Por Fabiana Reinholz

A Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou, na terça-feira (8), o projeto que autoriza a educação domiciliar no estado, conhecido pelo seu nome em inglês, “homeschooling“.

O Projeto de Lei 170/2019, de autoria do deputado Fábio Ostermann (Novo), recebeu 28 votos favoráveis e 21 contrários. Representantes do debate da educação são críticos à iniciativa.

Sem regulamentação federal, a proposta permite que crianças e adolescentes sejam ensinados por meio da educação domiciliar, sob o encargo dos pais ou responsáveis.

Caso seja sancionada pelo governador Eduardo Leite (PSDB), o RS passará a ser o 1º estado no país a regulamentar a modalidade. Até então, só o Distrito Federal tinha aprovado um projeto semelhante, em 2020.

“Nada justifica o homescholling. É interessante porque os mesmos que hoje querem o homescholling são os que chantagearam o governador para abrir as escolas presenciais ou então não votariam no projeto que definiria o plebiscito ou não [para privatização de estatais] no nosso estado. A incoerência dessas pessoas é algo lastimável”, afirma a presidenta do CPERS – Sindicato, Helenir Aguiar Schürer.

Para a dirigente, o homescholling só é bom para quem tem dinheiro para pagar professores que atendam seus filhos em casa.

“Agora, não é bom para as crianças porque a escola é o único espaço que as crianças têm de sociabilização, de conhecimento do outro, de perceber as diferenças de uma sociedade, de perceber as diferenças de uma pessoa para outra e saber conviver com a diferença. A escola também é um espaço muito especial para proteção das crianças. No nosso país, 80% das denúncias de assédio a crianças são feitas nas escolas, então a escola é um meio de proteção também”, ressalta.

Segundo reportagem do Sul 21, com base em um estudo do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com escolas fechadas durante a pandemia, as denúncias de violência sexual contra crianças em Porto Alegre diminuíram.

Na avaliação da presidenta da Associação Mães & Pais pela Democracia, Aline Kerber, para além da pandemia, que possibilitou experimentar os efeitos da educação em casa, mitigada pela interface online com a escola, a educação domiciliar retira as crianças do convívio da escola que é o lugar da diversidade e da pluralidade em relação à família e da sociabilidade.

“Com a enorme evasão escolar, legado da pandemia, ficará justificado o trabalho infantil se os pais disserem que o ensino se dá em casa. E as crianças exploradas e abusadas sexualmente pelos seus genitores, o que não é raro, infelizmente, simplesmente não irão na escola com o pretexto de estarem estudando em casa, e sempre foi na escola o desvelamento dessas violências”, aponta.

A educação domiciliar é permitida ou regulamentada em pouco mais de 60 países, entre eles Estados Unidos, Canadá, Colômbia, Chile, Equador, Paraguai, Portugal, França, Itália.

No Brasil, de acordo com a Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), 15 mil estudantes entre 4 e 17 anos, de 7,5 mil famílias, estão na educação domiciliar. A estimativa é que no RS tenha cerca de mil famílias.

Sobre a proposta 

Segundo o projeto, as famílias que optarem pelo ensino doméstico deverão informar a escolha para a Secretaria Estadual de Educação, que ficará responsável por regulamentar a matéria.

Os responsáveis deverão manter um registro atualizado das atividades pedagógicas desenvolvidas com os alunos. Para comprovar o aprendizado, crianças e adolescentes educados no regime domiciliar deverão passar por avaliações periódicas aplicadas pelo sistema regular de ensino.

Ainda segundo o texto, a fiscalização das atividades realizadas no âmbito da educação domiciliar caberá ao Conselho Tutelar da localidade, no que diz respeito aos direitos das crianças e dos adolescentes; e alternativamente à Secretaria Estadual de Educação e às Secretarias Municipais de Educação, no âmbito de suas respectivas competências, no que diz respeito ao cumprimento do currículo mínimo estabelecido.

Ao apresentar o seu projeto, que tramita há mais de dois anos na Assembleia, o deputado Fábio Ostermann destacou que trata-se de uma questão de liberdade de escolha.

“Aprovar o homescholling não significa de forma alguma o fim da escola formal, o fim da escola tradicional. Também não é a solução para os problemas da nossa educação. E nem é o modelo passível de ser implementado em larga escala para todos os alunos do estado do RS. Nunca passou por nossa cabeça nada parecido e nem muito menos tornar essa prática educacional em algo obrigatório, trata-se apenas de oportunizar um outro método, muito preconceito paira sobre o tema”, ressaltou.

Ao defender o projeto, citou como exemplo o caso de uma estudante que foi aprovada na USP, mas que segundo ele foi proibida de se matricular na universidade, pois, desde o início do ensino médio, optou por estudar em casa e não possui diploma de conclusão.

“O homeschooling já é um fato social em todo o Brasil, mas ainda é alvo de preconceito e represálias. Cabe a nós garantirmos que a educação domiciliar aconteça dentro da lei”, disse.

Para o deputado, o modelo de educação não prejudica a socialização das crianças e adolescentes.

“Essa prática existe há séculos, não tendo começado na pandemia, ela não se restringe ao ambiente caseiro. Quem pratica a educação domiciliar tem aulas em casa, mas também realiza atividades em outros ambientes, pratica esportes, faz aula de música. Essas crianças não são privadas de contato, também têm amigos, brincam e interagem com outras crianças”, expôs.

Relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça, o deputado Sergio Turra (PP) criticou os discursos daqueles que se colocam contra o projeto por pura ideologia.

Afirmou ter acompanhado muitos depoimentos de famílias educadoras. “Estamos conferindo um direito que a Constituição Federal diz que é um dever dos pais e do Estado: fornecer educação”, disse. Para ele com a aprovação, o RS criaria jurisprudência do assunto em nível nacional.

Contrária ao projeto, a deputa Sofia Cavedon (PT), integrante da Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia, destacou as fragilidades do projeto.

Lembrou da discussão ocorrida na Comissão, na qual ela era a relatora da matéria, mas o parecer não chegou a ser votado. Segundo ela, foi pedido uma diligência sobre o tema ao Conselho Estadual da Educação, que registrou parecer contrário ao projeto.

Conforme destacou a parlamentar, não há amparo legal na legislação brasileira para permitir essa prática, havendo necessidade de sua criação e também de mudanças em várias legislações federais, que vão do Estatuto da Criança e do Adolescente à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, à própria Constituição Federal.

“Tem todo um arcabouço que não é gratuito”, destacou, pontuando que o projeto remonta a 1890.

“Ali a educação no lar era livre, sem qualquer inspeção oficial, inclusive (…) Nós evoluímos para esse direito à educação, hoje a legislação fala da obrigatoriedade de 4 a 17 anos e é imprescindível que a criança e o adolescente possa vivenciar sua aprendizagem, a pluralidade a cidadania, no multiculturalismo, construir seu conhecimento, tornando-se sujeito pleno da sua cidadania”, manifestou Sofia Cavedon.

Para Luciana Genro (PSOL), também contrária à iniciativa, é um pouco irônico que o projeto seja de Ostermann, já que ele foi um dos mais aguerridos parlamentares na luta pela volta dos professores à escola antes mesmo de estarem vacinados.

Conforme pontuou, a educação domiciliar é diferente do ensino remoto e, em alguns aspectos, até pior, pois não permite a socialização via internet como as crianças têm na educação à distância.

“No homescholling a criança e o adolescente ficam completamente isolados de outras crianças no que diz respeito ao seu aprendizado. Isso é a negação de um direito da criança”, afirmou.

A parlamentar também destacou a falta de impacto financeiro do projeto, uma vez que impõe várias obrigações ao Estado, que deve fiscalizar a modalidade.

“Quanto isso vai custar ao Estado, deputado Ostermann? Nós não sabemos, mas sabemos que com certeza o prejuízo será dos jovens, das crianças, dos adolescentes e da educação como um todo”, afirmou.

Também se manifestaram na sessão de votação as deputadas Juliana Brizola (PDT) e Zilá Breitenbach (PSDB) e os deputados Jeferson Fernandes (PT), Faisal Karam (PSDB), Pepe Vargas (PT), Issur Koch (PP), Mateus Wesp (PSDB), Marcus Vinícius (PP), Gilberto Capoani (MDB), Eric Lins (DEM), Giuseppe Riesgo (Novo), Zé Nunes (PT), Tiago Simon (MDB), Elizandro Sabino (PTB), Fernando Marroni (PT) e Luiz Fernando Mainardi (PT).

Fragilidades da metodologia 

“Quem fiscaliza o ensino domiciliar? Serão drenados os parcos recursos públicos para a fiscalização das famílias que optarem por homeschooling?”, questiona Aline Kerber.

Ela destaca que, em 16 meses de pandemia, o Estado não tem sequer um diagnóstico público das condições estruturais e sanitárias das escolas públicas, estaduais e municipais. Em Porto Alegre, o órgão de fiscalização das questões sanitárias na escola, o COE municipal, foi criado só em maio deste ano.

“Imagina se teremos capacidade estatal para dar conta do acompanhamento das crianças e adolescentes que estarão com o ensino domiciliar. É uma matéria que precisa de regulamentação federal primeiro, um plano e muito recurso, que já não tem, em razão do congelamento dos gastos sociais, para que fosse possível garantir educação domiciliar como política pública”, afirma.

Para ela, isso significa reduzir o investimento na educação pública e no papel social da escola, “que se mostrar cada vez mais decisivo para a segurança dos direitos das crianças e adolescentes”.

Na justificativa do projeto, o deputado Ostermann destaca como fator relevante que a adoção do modelo de educação domiciliar traz maior qualidade na atenção dedicada às crianças portadoras de necessidades especiais.

Segundo ele, essas crianças frequentemente não recebem o necessário amparo, seja na rede pública, seja na rede privada de educação, em razão de suas circunstâncias específicas e particulares.

A presidenta da Associação Mães & Pais pela Democracia rebate e diz que as escolas públicas são referências no atendimento de qualidade das crianças com deficiência.

Contudo, conforme expõe, por falta de investimento e desestruturação das políticas educacionais no estado, com mais de 60 escolas fechadas no RS, acabaram com a Educação de Jovens e Adultos e reduziram muito o atendimento e a qualidade da educação especial, retirando professores desse atendimento para o atendimento geral.

“Aí fica fácil dizer que as crianças não recebem amparo. Claro, há uma política voltada à redução do atendimento especializado com a retirada de professores. Temos é que investir em formação de professores e revincular os profissionais que saíram desse serviço aos alunos que precisam de atendimento especializado. Busca ativa, diagnóstico, formação de professores e desenho institucional voltado à essa demanda já dariam conta”, finaliza.

Sobre esse ponto, a presidenta do CPERS é categórica, diz que basta se cumprir a lei. “O problema não é da escola, o problema é do gestor que não cumpre a lei da classe especial, da inserção, da inclusão dos portadores de deficiência. Ao invés de estar inventando o homescholling, que é algo que vai somente diferenciar mais as classes sociais no nosso país, eles poderiam muito bem ter feito uma lei exigindo o cumprimento da lei federal, que exige que onde tenha criança com necessidades especiais, tenha que ter um professor de apoio em sala de aula.”

Veja como votou cada deputado.

*Com informações da Assembleia Legislativa