Desigualdade brasileira pela primeira vez chega no futebol

Atualizado em 3 de abril de 2019 às 15:06

É até um milagre que o futebol brasileiro por décadas tenha passado incólume pelos problemas da sociedade brasileira e sua maior tragédia: a desigualdade gritante. Hoje é fácil perceber que existem forças financeiras que desequilibram a balança, algo que antes era restrito a talento e bons trabalhos.

De 1971 até 2006 foram 17 campeões diferentes no Campeonato Brasileiro da Série A, algo inimaginável em qualquer país com futebol de alto nível. Os times grandes de São Paulo e do Rio são os maiores vencedores, mas clubes de Minas e Rio Grande do Sul também venceram. O Nordeste teve campeões (Sport e Bahia), o interior teve um campeão com o Guarani. O Paraná levou dois troféus com Coritiba e Athlético Paranaense.

Mesmo nos anos de Pelé, o Bahia venceu o Rei, assim como o Cruzeiro e a Academia do Palmeiras,nas disputas nacionais.

Entretanto, na última década e meia, houve uma grande mudança. O domínio Rio-São Paulo aumentou muito, com o Cruzeiro como “intruso”. E não há como não relacionar isso a desequilíbrios causados por esses clubes mais poderosos.

Em 2011 o Corinthians, presidido por Andres Sanchez, desfiliou-se do Clube dos 13, entidade que negociava conjuntamente os direitos televisivos e garantia um pequeno equilíbrio. Logo esse equilíbrio foi para o espaço: Corinthians e Flamengo passaram a negociar sozinhos e ganhar muito mais da TV Globo, sempre a principal negociadora e interessada nessa desunião.

Sim, os números aumentaram para todos, mas de forma completamente desproporcional. E o aumento seria natural, já que o futebol tornou-se um produto ainda mais visado, pela sua garantia de audiência em uma era onde o Jornal Nacional e o Fantástico não tem nem 10% do poder de antes.

Claro que esses números são maiores por uma razão: o rubro-negro carioca e o alvinegro paulista têm as duas maiores torcidas do país.

Só que analisando casos ao redor do mundo, clubes grandes e ligas esportivas importantes tratam essa grande torcida de forma muito mais justa.

Na Premier League, por exemplo, os direitos televisivos são fechados pela liga, que não é da Federação Inglesa. Aqui no Brasil, o Campeonato Brasileiro não é organizado pelos clubes e sim pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol).

E a divisão é feita de forma muito mais inteligente. Metade do montante, que chega na casa dos bilhões de libras, é dividido igual por todos os 20 clubes. O restante é dividido como gratificação pela posição na tabela e os 25% restantes pelo número de partidas transmitidas, aqui sim uma premiação para os times que geram mais interesse naturalmente.

Isso possibilita que os chamados times pequenos se reforcem e tenham poder de fogo. E quem um Leicester possa aparecer e superar Manchester United, Arsenal, Tottenham e os novos ricos Manchester City e Chelsea. Os times chamados grandes já vão ganhar mais dinheiro com bilheterias e venda de camisas e material licenciado.

É claro que na Inglaterra não estamos falando de um cenário paradisíaco, já que os últimos dois times citados foram comprados por multibilionários, que injetam dinheiro a todo instante. Mas esse não seria um problema no Brasil, já que a grande maioria dos clubes não tem essa estrutura de propriedade.

O Flamengo, na previsão das cotas para 2019, pode chegar a ganhar 327 milhões. O Grêmio, que é um clube gigante e vitorioso, só poderia chegar a 100 milhões. O Flamengo precisa ser muito incompetente para não dominar o tricolor gaúcho nos gramados com tamanha disparidade. E está fazendo exatamente isso nos últimos anos. Até quando, não sabemos.

O Fla sai muito na frente já na liberação do balanço. O Palmeiras pode fazer o mesmo com cotas também gigantes e o apoio da Crefisa, empresa de empréstimos que patrocina o clube. O Corinthians ganhou dois brasileirões em três anos e só não está melhor porque construiu um estádio que não tinha possibilidade de pagar. A Odebrecht fez a obra. Esses times são favoritos sempre com essa estrutura montada.

Ainda citando exemplos de outras ligas, a NFL, liga de futebol norte-americano, as cotas televisivas também são divididas, com o time do menor mercado (Kansas City Chiefs) podendo se equiparar às equipes de Nova York. Há também um limite na folha salarial e o pior time de um ano pode escolher a melhor revelação universitária.

A frase usada para explicar esse sistema é “a liga é tão forte quanto seu time mais fraco”.

Isso nos Estados Unidos, onde os clubes são franquias que têm donos e podem mudar de cidade.

O Brasil, país do futebol, onde o estádio abraçava a todos, agora temos Arenas Padrão FIFA, clubes aumentando a desigualdade financeira a cada ano que passa e um campeonato brasileiro que está perdendo seu maior charme: a imprevisibilidade.

Claro, o futebol muda, assim como todo o resto. Mas talvez estejamos indo um pouco longe demais. Um exemplo é as naturalizações de jogadores para jogar nas seleções nacionais, mesmo que a ligação com aquele país não seja grande.

O goleiro Franco Armani, por exemplo, teve que ser chamado às pressas pela Argentina, conforme esta publicação no site Futebol Latino, para não perdê-lo para a Colômbia, país de sua esposa. As naturalizações de jogadores brasileiros para jogar por seleções de menor tradição também são comuns.

Não há porque brigar com o direito de fazer isso. Mas talvez um precedente se abra para seleções de países endinheirados buscarem jogadores em países da América do Sul e África antes deles representarem seus países de origem.

Enfim, há que se proteger e criar um equilíbrio para o esporte não perder sua essência e competitividade. Mas pedir isso da FIFA é realmente algo insano.