Dez anos depois de sua morte, Mercedes Sosa inspira cantos e homenagens

Atualizado em 5 de outubro de 2019 às 23:26

Da Rede Brasil Atual:

Conhecida como La Negra, a cantora argentina Mercedes Sosa, morreu na madrugada de 4 de outubro de 2009, aos 74 anos, calando umas das mais fortes vozes musicais da América Latina. “Foste progressista no coração e nos ideais, além de uma grande feminista”, escreveu Araceli Matus, neta de Mercedes, em 9 de julho de 2018, quando a artista completaria 83 anos. Para Araceli, sua avó continuaria cantando imponente pelo mundo, reagindo àqueles que diziam: ‘Canta muito bem, pena que fala’. “E claro que falavas! Esse foi teu caminho, o das denúncias pelas dores de teu povo”, afirma. Nesta sexta-feira (4), quando se completaram 10 anos da morte de Mercedes Sosa, várias homenagens foram prestadas nas redes sociais.

Fundação Mercedes Sosa, em Buenos Aires, além de preservar a obra e a memória da cantora, também abriga eventos que tratam de direitos humanos. No início deste mês, por exemplo, houve um ato por Santiago Maldonado, jovem desaparecido há mais de dois anos durante manifestação em defesa dos indígenas mapuches – dias depois, foi encontrado morto. O encontro discutia desaparecimentos forçados e violência estatal  na América Latina. Entre os presentes, estava o também cantor Victor Heredia, outro contestador da injustiça social, que ontem postou mensagem em louvor a Mercedes: “Serei seu eterno admirador! Cantora, companheira, amiga”. Assim  como ele, vários artistas escreveram para homenageá-la.

Nascida em San Miguel de Tucumán em 9 de julho – dia da independência da Argentina – de 1935, aos 15 anos Haydée Mercedes Sosa usou um pseudônimo (Gladys Osorio) para participar de um concurso de cantores, que venceu. Desde então, lançou-se no universo artístico. Em 1963, foi uma das signatárias daquele que ficou conhecido como Manifiesto del Nuevo Cancionero, em busca de outros rumos para a canção popular. Outro participante foi o músico Oscar Matus, com quem Mercedes teve seu  filho Fabián, que morreu em 15 de março último, aos 60 anos. Em 2013, Fabián idealizou o documentário Mercedes Sosa, la voz de Latinoamérica, dirigido por Rodrigo Vila.

Durante a ditadura militar argentina iniciada em 1976, perseguida e ameaçada, teve de exilar na Europa (Paris e Madri) – chegou a ser presa na cidade de La Plata em 1979 e proibida de cantar em seu país. Retornou em 1982, quando se apresentou no Teatro Ópera, em Buenos Aires. A ditadura terminaria no ano seguinte.

O primeiro trabalho, Canciones con fundamento, é de 1959. Os títulos de alguns de seus discos ajudam a dar ideia de seu posicionamento político e suas influências: Yo no canto por cantar (1966), Mujeres argentinas (1969), El grito de la tierra (1970), Homenage a Violeta Parra (1971), Hasta la victoria (1972), Traigo un pueblo en mi voz (1973), Mercedes Sosa interpreta a Atahualpa Yupanqui (1977), ¿Será posible el sur? (1984).  Uma extensa obra, que foi até o ano de sua morte, quando gravou os dois volumes do álbum Cantora, com diversas participações, inclusive de brasileiros (Caetano Veloso e Daniela Mercury). Um ano antes, em 2008, ela fez suas últimas apresentações no Brasil. Alguns discos foram lançados postumamente. Suas últimas gravações, em junho de 2009, foram feitas em um pequeno estúdio montado em sua casa: Él ángel de la bicicleta (León Gieco-Luis Gurevich) e La Soledad (Pablo Milanés).

Mercedes era presença constante por aqui. Certamente a gravação mais lembrada é a de Volver a los 17da chilena Violeta Parra, incluída no LP Geraes, de Milton Nascimento, em 1976. Em entrevista à Revista do Brasil em 2011, Milton conta que teve “medo” de falar com ela e foi levado até o camarim por Vinicius de Moraes.

Fiquei vendo o show dela, ela parecia uma mulher da altura do Corcovado, grande, alta, forte. Quando acabou, o Vinicius disse: “Vamos lá conversar com ela”. Eu disse: “Não vou, não. Estou com medo dela. Estou com medo mesmo. Ela é muito forte, não sei se eu aguento encarar essa mulher”. Ele disse para eu deixar de ser bobo. Pegou minha mão, atravessamos o teatro. Ele segurando minha mão como se eu fosse um bebê, e eu morrendo de medo. Quando chegamos no camarim, ela estava de costas, virou e disse: “Milton!”. Aí entramos, conversamos… Eu estava louco pra fazer, apesar do medo, uma participação dela no disco Geraes. Depois que fiquei mais calmo, eu disse: “Mercedes, eu queria que você cantasse comigo no meu disco”. Ela respondeu: “Olha, eu não vou poder cantar, porque eu só canto em espanhol”. E eu: “Mas é em espanhol”. Ela: “Pois é, mas acontece que a minha gravadora não vai deixar”. E eu: “Mas, Mercedes, a sua gravadora é a mesma que a minha”. Ela foi tentando escapar. Tudo que ela falava, eu tinha uma resposta na boca.

No show de 1º de Maio promovido pela CUT em São Paulo em 2010, Milton Nascimento homenageou Mercedes, que havia morrido em outubro do ano anterior. Na entrevista, ele conta outras histórias, inclusive como a argentina dirigia em alta velocidade. Ao lado do cantor argentino León Gieco, Mercedes e Milton gravaram ao vivo o álbum Corazón Americano, a partir de um show em 1984 no estádio do Vélez Sarsfield, tradicional clube de futebol.

Repertório social

Em matéria publicada nesta sexta pelo jornal Página 12, Gieco lembrou do dia em que foi convidado por Mercedes para ir à Alemanha, sua viagem mais longa até então. “Um dia me telefonou e disse: Leoncito, depois de amanhã quero te ver aqui em Frankfurt. Quero que vejas como os alemães param e dançam com Solo le pido a Dios, o que passa com eles com essa canção, sem que entendam o que diz a letra”, recordou. A canção é uma das mais conhecidas do repertório de Mercedes:

Solo le pido a Dios
Que lo injusto no me sea indiferente

Outra obra marcante é Todo Cambia, do também chileno Julio Numhauser:

Cambia lo superficial
Cambia también lo profundo
Cambia el modo de pensar
Cambia todo en este mundo

(…)

Pero no cambia mi amor
Por más lejo que me encuentre
Ni el recuerdo ni el dolor
De mi pueblo y de mi gente