Discutir com a idiotia mentirosa significa aceitar a mentira como ponto de partida. Por Lenio Streck

Atualizado em 1 de julho de 2021 às 9:33
Bolsonaristas em São Paulo. Foto: Reprodução/TV Globo

Publicado originalmente no ConJur:

Por Lenio Luiz Streck

O professor de antropologia da UFRJ, Mauro Gonçalves, ao escrever brilhante introdução ao livro O Brasil no espectro de uma guerra híbrida, de Piero Leirner, conta que a palavra NAVAH, no hebraico do velho testamento, significa, em uma de suas acepções: “dar existência a coisas que não existem” (e faz interessante relação com a marca Havan, espécie de siglônimo que dá nome à famosa rede de lojas cujo proprietário parece ser expert em Navah). Gonçalves fala da guerra híbrida e relaciona com esse ponto: “dar existência a coisas que não existem”.

Os tempos de fake news, em que narrativas substituem fatos (como se existissem apenas interpretações, como que a repetir a célebre frase de Nietzsche), podem ser compreendidos perfeitamente com o sentido de “Navah”: dar existência a coisas que não existem.

A criação de uma realidade que, porque criada como realidade, passa a ser tratada como real e, porque tratada como real, passa a ser exatamente como se fosse real. Só que não é. Só que já não importa mais. Princípio Navah.

Vejamos: para o triunfo de uma narrativa, não é nem necessário um fato para ser “substituído”. Basta dar existência coisas que não existem. Um dia assistindo depoimentos de pessoas como as Dras Nise Yamaguchi e Mayra Pinheiro na CPI vale por dezenas de compêndios de niilismo. Fale o que quiser. Tomamos a ficção por real.

Assim, “coisas” como tratamento precoce para um vírus e bizarrices como de uma declaração de uma ex-jogadora de vôlei quem, no mesmo dia, disse ser contra vacina e depois negou que seja contra vacina. Isto é, já se internalizou que basta dizer que não disse, basta negar o óbvio e uma nova “coisa” aparece. A última versão é a coisa criada para substituir fatos.

Isso explica parte do discurso jurídico. Por exemplo, “coisas” (ups) como “verdade real”, “livre convencimento”, “jurisprudência defensiva”, princípios como “valores” (e nisso cabe qualquer coisa), simplificações de coisas complexas. A natureza de prática social do direito (que por si só não explica a íntegra do fenômeno) acaba por permitir que ficções e convencionalismos constituam a realidade daquilo que entendemos como sendo jurídico. Só que não é. Só que… Navah. Querem algo mais Navah do que essa fabricação de pamprincípios? Ou essas “coisas” tipo legal ou visual law? Dá existência a coisas que não existem e depois passam a existir.

É o “princípio da irrealidade”, usado pelo (controverso) Bruno Maçães para explicar os Estados Unidos da América pós-Trump. Nada é verdadeiro: tudo é possível.

Qual é o busílis disso?

Ora, a vitória do Navah é a derrota de quem ainda acredita que a realidade, que os fatos, que as coisas como elas são de verdade significam alguma coisa. Já não bastou que matassem Sócrates: mataram também Platão. Cale a boca, velho. Preferimos a caverna. Criamos as sombras que queremos por aqui. E elas são reais.

Essa é a “sacada Navah”: as mentiras criam seu próprio critério de verificação. E a derrota é a seguinte: discutir já é entrar na fraude. Esse é o grande ponto. Discutir com a idiotia mentirosa significa aceitar a mentira como ponto de partida. Eis por que estamos lascados.

Dizer o óbvio, dizer que a mentira é mentira e que a fraude é uma fraude, implica descer ao nível da mentira e da fraude. Se Deus não existe, tudo é permitido, dizia Dostoiévski. E se nada é verdadeiro, tudo é possível.

Brasil, 2021: as sombras são reais. Navah!

Post scriptum: A dignidade da advocacia e as prerrogativas confundidas

Fechando a coluna, assisti ao lamentável ataque ao advogado Alberto Zacharias Toron em plena CPI da Pandemia. O senador Oto, com notável desempenho na CPI até aquele momento, pisou feio na bola, ao confundir o papel do advogado com o seu cliente. Toron reagiu. E bem.

No Brasil o exercício da advocacia virou profissão de risco. Dependendo do cliente que defende, o causídico pode ser atacado. Por isso a advocacia é para os fortes, já dizia Sobral Pinto.

Lembro sempre do Dr. Sandoval, advogado de um espião russo no filme A Ponte dos Espiões. Atacado pelos seus colegas de trabalho, respondia: estou fazendo meu trabalho. O seu cliente indagou: você nunca me perguntou se eu, de fato, era culpado. E Sandoval responde: não me importa. Estou fazendo meu trabalho!

Foi por isso que inventei o fator Stoic Mujic para homenagear essa — hoje perigosa — profissão.

Stoic mujic, Toron!