Divulgação da reunião de Bolsonaro: choque entre sigilo e publicidade. Por Fernanda Valente

Atualizado em 18 de maio de 2020 às 15:51
Jair Bolsonaro e Sérgio Moro. Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil

Publicado originalmente no site Consultor Jurídico (ConJur)

POR FERNANDA VALENTE

Decidir que trechos de uma reunião entre presidente da República e ministros podem ou não ser divulgados é escolha nada trivial — e algo talvez inédito na história democrática brasileira, como é o caso do encontro entre Jair Bolsonaro, o vice-presidente Hamilton Mourão e vários ministros de Estado, ocorrido em 22 de abril.

Caberá ao decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, relator do inquérito 4.831, a intrincada solução jurídica para esse caso concreto.

O inquérito 4.831 investiga as acusações feitas pelo ex-ministro da Justiça Sérgio Moro ao pedir demissão da pasta. Segundo ele, nesse meeting de 22 de abril — aniversário de 520 anos do Brasil — Bolsonaro, movido por intenções pouco republicanas, o pressionou para indevidamente trocar o comando da Polícia Federal.

Nesse dilema sobre o que deve prevalecer quando os investigados são membros do alto escalão do governo federal estão, de um lado, a lei da interceptação telefônica (Lei 9.296/96), que limita o conteúdo a ser divulgado; de outro, princípios que norteiam a administração pública, que tem o dever de tornar públicos seus atos (artigo 37 da CF). É nesse diapasão que deve decidir Celso de Mello.

Cada ator institucional defende um lado. A Advocacia-Geral da União sugere que apenas as falas de Bolsonaro devem ter o sigilo levantado. A Procuradoria-Geral da República pediu que não seja divulgada a íntegra do conteúdo da reunião, mas só as falas do presidente relacionadas ao objeto da investigação — notadamente as relacionadas à atuação da Polícia Federal.

Já a defesa de Sergio Moro quer a divulgação ampla para amparar as acusações do ex-juiz federal conhecido por seus vazamentos seletivos e descumprimento à lei das escutas telefônicas. O decano da corte definiu inicialmente que o inquérito tramitaria com ampla publicidade, mas depois impôs sigilo temporário no caso específico da reunião. A gravação da reunião foi enviada à corte e transcrita.

Do ponto de vista político, uma grande curiosidade circunda a todos sobre o conteúdo das discussões na reunião. Segundo advogados, porém, é preciso ponderar o alcance e a repercussão que eventual levantamento de sigilo pode ter.

O constitucionalista Eduardo Mendonça explica que a regra geral é dar publicidade aos atos estatais, mas pondera que ela não abrange todas as reuniões. Ele detalha que a ampla divulgação não encontra precedentes em outros países, além de ser impossível pela natureza estratégica e sigilosa das discussões e dos dados.

“O que for pertinente ao objeto do inquérito deve ser tratado como prova e mantido no processo. Sendo prova do processo, a regra é a publicidade. Só poderia deixar de ser divulgado fundamentadamente, se houver falas entremeadas sobre temas que devam ser mantidos em sigilo por segurança nacional”, afirma.

Excepcionalidades

O que está posto é a justificativa do sigilo em relação a temas não relacionados ao inquérito. E uma das principais motivações para essa excepcionalidade é o conteúdo da reunião, que poderia revelar algum segredo de Estado, causar incidentes diplomáticos ou ainda colocar em risco a segurança nacional.

Mas não é o caso, segundo um dos interessados na divulgação integral do conteúdo, Sergio Moro. Segundo o ex-ministro, o fato de alguns ministros terem feito declarações potencialmente ofensivas não justifica a manutenção do sigilo.

Mesmo diante da possibilidade de ter informações sensíveis, chamou a atenção do criminalista Welington Arruda que o Planalto defenda a divulgação de parte do diálogo entre o presidente e Moro. “Quem garante que durante a reunião, como um todo, não houve manifestação do chefe do Executivo no sentido de interferir na PF, tal qual acusou o ex-ministro, em outros diálogos, que não com Moro?”, questiona.

Segundo o advogado, a reunião faz parte de uma investigação e a lei define que ela precisa ser pública, com exceção de “motivos que garantam o sigilo das informações e de documentos, ou vedar sua publicidade, a fim de evitar dissabores políticos que virão do Planalto”.

Direitos balanceados

A constitucionalista Vera Chemim analisa que o cenário das gravações sobre as tratativas entre agentes públicos remetem inevitavelmente aos princípios constitucionais.

Ela ressalva que os direitos fundamentais individuais não são absolutos e aponta que as informações gravadas dizem respeito à função pública exercida por pessoas físicas. Neste contexto, diz, o artigo 21 do Código Civil prevê o direito à privacidade a pessoa natural e não a função pública de um agente público.

“Portanto, a ‘pessoa natural’ tem direito à vida privada mas, os atos dos agentes públicos, ou seja, as funções públicas exercidas por eles são de ‘interesse público’ e devem ser divulgadas, prevalecendo incondicionalmente sobre o seu direito à privacidade enquanto ‘pessoa natural’, ainda mais num contexto permeado de indícios que permitem deduzir que se está diante de ‘desvios de finalidade’ na condução da Administração Pública”, explica.