O caso de feminicídio mais notório no futebol nas últimas décadas foi transformado em documentário pela Netflix. Trata-se da execução sumária de Eliza Samudio, ordenada por seu ex-amante e algoz, o ex-goleiro Bruno, que na época era uma figura central no Flamengo, então campeão brasileiro.
Tanto Eliza quanto Bruno, oriundos de condições muito humildes, aspiravam ascender social e economicamente em uma das poucas profissões que ainda podem, sem muitos intermediários, realizar tais sonhos burgueses.
No auge da fama, Bruno se viu envolvido em uma trama macabra que resultou em um assassinato e deixou um órfão: Bruninho, fruto do tumultuado relacionamento de Eliza com o ex-goleiro. O documentário “A Vítima Invisível: O Caso Eliza Samudio” ilustra a vida da jovem, que foi assassinada a mando de Bruno aos 25 anos em julho de 2010, e estabelece uma linha do tempo clara e educativa.
A história dominou as manchetes em todo o Brasil, amplificado pela notoriedade de Bruno no Flamengo, um dos maiores clubes do país. Ele foi condenado a 22 anos e três meses de prisão por homicídio triplamente qualificado, ocultação de cadáver, sequestro e cárcere privado. Bruno contou com a ajuda de cúmplices e aliados próximos em sua vida de celebridade, incluindo amantes e noivas, até a consumação do feminicídio.
Os coautores do crime, como o ex-policial Marcos Aparecido dos Santos, conhecido como “Bola”, e Luiz Henrique Ferreira Romão, o “Macarrão”, também foram condenados. Atualmente, o ex-goleiro está em liberdade condicional desde 2023, trabalhando como entregador de móveis em uma loja em São Pedro da Aldeia, próxima a Rio das Ostras, no litoral do Rio de Janeiro.
Dirigido por Juliana Antunes, o documentário revela mensagens inéditas que expressam os desejos de Eliza, que estava grávida do atleta e tinha planos de voltar a estudar e cuidar do filho. “Vou fazer supletivo a distância. Jamais vou encher o saco dele, tu sabe. Quero só paz para cuidar do meu filho e estudar. Viver minha vida sem medo”, ela diz em uma das conversas destacadas no filme.
Este relato está imerso no universo machista e autoritário que permeia os bastidores e os campos de futebol, das ligas amadoras em comunidades humildes às mais prestigiadas e ricas da Europa. Vide os casos de Daniel Alves e Robinho nas principais ligas europeias.
O documentário questiona o sistema de justiça brasileiro e a percepção pública sobre criminosos que, como Bruno, reintegram-se à sociedade após cumprirem parte de suas penas. A produção usa depoimentos de investigadores, policiais, peritos, delegados, advogados e pessoas próximas tanto da vítima quanto do goleiro, incluindo a ex-esposa de Bruno, que participa desse complexo enredo de mesquinharias e imoralidades.
A imprensa e o público retrataram Eliza Samudio como uma oportunista quando sua relação tumultuada com o goleiro Bruno se tornou pública, especialmente nos meses que antecederam sua trágica morte, durante os quais ela reportou várias agressões e ameaças por parte dele. “Eliza fez tudo certo, ela buscou as autoridades, contou à imprensa o que estava acontecendo. Ela pediu socorro para todo mundo, mas não é ouvida”, diz Monica Castro, advogada da mãe de Eliza.
Surge uma visão mais completa de Eliza, com depoimentos de familiares e amigas de infância que delineiam sua personalidade. Paralelamente, explora-se um pouco da história de Bruno, incluindo os desafios comuns enfrentados por ambos desde a infância.
Entre os entrevistados está Dayanne Rodrigues Souza, ex-esposa de Bruno, que foi absolvida dos crimes relacionados ao sequestro e cárcere privado do filho de Eliza, Bruninho. O documentário teve acesso exclusivo ao computador pessoal de Eliza, que estava sob custódia da polícia desde o crime.
Bruno Fernandes não foi convidado a participar. A diretora Juliana Antunes explica: “Essa decisão foi estabelecida desde o início do projeto quando fui convidada para ser a diretora artística. Optamos por contar a história a partir de uma narrativa centrada na vítima. Na época em que o caso veio à tona, Bruno era o porta-voz da narrativa. Ele foi amplamente entrevistado e escutado, enquanto a visão de Eliza era frequentemente questionada e distorcida”.
Ela adiciona: “Com seu desaparecimento, Bruno se tornou a principal fonte sobre o caso. No filme, sua presença se dá por meio de entrevistas feitas quando as investigações estavam em curso, e por imagens de seu julgamento, que oferecem um contraponto à história narrada por aqueles ligados a Eliza”.