
Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor
POR LUIS FELIPE MIGUEL, cientista político
Pessoas cuja opinião respeito se disseram maravilhadas com Capitalism: a conversation in critical theory, o diálogo entre Nancy Fraser e Rahel Jaeggi.
Eu fiquei francamente decepcionado.
Boa parte do livro tem a forma de algo que se pode chamar de “melismas acadêmicos”: assim como, no canto lírico, uma única nota pode ser sustentada por longo tempo por meio de variações vocais, uma mesma ideia, expressa em um parágrafo, é estendida por páginas e páginas de floreios virtuosísticos.
Usado com moderação, pode ser bonito na ópera. Na teoria social, nunca.
Há muita profissão de fé ritual na necessidade de uma compreensão do capitalismo que integre os “insights do marxismo”, como diz Fraser, com os novos paradigmas (feminismo, ecologia, pós-colonialismo), mas muito pouco que avance nessa integração ou mesmo que esclareça por que ela é tão necessária.
Muito daquilo que é apresentado como inovador mostra ser, na verdade, reinterpretações bem chãs de Marx ou Polanyi.
Outras vezes, a busca por se diferenciar do legado marxiano leva a incorrer em simplificações injustas. Por exemplo, a ideia, repetida por Fraser, de que a visão marxista da luta de classes exclui lutas relativas a trabalho não-assalariado ou expropriado – é difícil sustentar isso, a não ser a partir de uma leitura muito empobrecida e parcial do marxismo e do próprio Marx.
Não é que o livro seja uma perda de tempo; as contribuições sobretudo de Jaeggi, uma autora que até então eu não conhecia, são muitas vezes interessantes. Mas frustrou expectativas elevadas.
O contrário ocorreu com Against democracy, um livro de 2016 de Jason Brennan, que li na mesma época que o de Fraser/Jaeggi, isto é, faz uns oito ou nove meses.
Provavelmente não concordo com uma linha do livro de Brennan – se bobear, encontro defeito até no ISBN. Mas ele articula com notável honestidade os argumentos subjacentes a muito da teoria liberal da democracia limitada, inclusive da sua onda atual, preocupada com a “crise” da ordem liberal-democrática. Ele diz muito daquilo que Levitsky & Ziblatt ou Mounk pensam, mas não têm coragem de assumir. E leva o raciocínio à conclusão lógica, que os outros evitam cuidadosamente: seria preciso abandonar o próprio ideal da democracia, em favor de algo mais “eficiente”.
É bem escrito, ousado, divertido.
Seu ponto de partida é correto (pronto, concordo com alguma coisa): as teorias da democracia não podem se refugiar em mundo ideal. Elas têm que falar ao mundo real. Mas o realismo de Brennan é estático, incapaz de apreender o fato de que esse mundo real está em permanente processo de mudança – e que a teoria, portanto, precisa identificar as possibilidades abertas por esse movimento. Ao não fazê-lo, torna-se ou conservadora ou reacionária.
Tal como a filosofia analítica costuma ser, o livro de Brennan é engenhoso, cheio de exemplos bem bolados. Os exemplos têm, também como de costume nessa literatura, a função de obscurecer a ausência de perspectiva histórica, construindo cenários abstratos em que agentes vindos de lugar nenhum interagem num vazio social.
O livro todo trabalha com a oposição “verdade” versus “opinião”. A democracia teria dificuldade de alcançar a verdade porque os cidadãos constroem suas opiniões com base numa montanha de desinformação. Os exemplos da desinformação, espalhados pelo livro, são mesmo impressionantes. Metade dos cidadãos estadunidenses não sabe contra quem os Estados Unidos lutaram na Segunda Guerra Mundial. Menos de um terço é capaz de dizer que o princípio “de cada um de acordo com suas habilidades, a cada um de acordo com suas necessidades” não está na constituição dos EUA. E não vem de hoje: em 1964, logo depois da crise dos mísseis, isto é, no auge da Guerra Fria, só uma minoria de estadunidenses sabia que a União Soviética não integrava a OTAN.
Mas a incompetência política nunca é problematizada: é como um problema genético, não um efeito da própria ordem política.
Isso porque o livro nunca põe em xeque a redução da democracia ao voto. A maioria eleitoral é sua definição absoluta, o que permite ao autor traçar paralelos bem farsescos. Assim, a democracia seria igual a fazer uma votação para a maioria escolher o cirurgião que vai me operar.
O entendimento de base, portanto, é que a ordem política é um empreendimento de caráter primordialmente epistêmico: a melhor ordem é aquela que tem mais chance de alcançar a verdade (alguém gritou “Platão”?). Brennan usa fartamente exemplos de decisões sobre política econômica, sem que sequer passe pela sua cabeça a possibilidade de que a decisão “melhor” ou “mais acertada” não seja a mesma para grupos sociais diferentes. É a introjeção absoluta da máxima thatcheriana: não há alternativas.
Ou seja: a categoria do interesse desaparece. Quando aparece (na discussão sobre “vulcanos”), o interesse é um problema, já que o modelo é o eleitor “racional”. E o interesse é visto, classicamente, como obstáculo ao exercício da razão.
Estamos no campo do individualismo epistemológico e sociológico exacerbado, em que o indivíduo é um dado e a desconsideração às circunstâncias sociais é absoluta. Ao mesmo tempo, o enquadramento constantiano nunca é desafiado. A política é simplesmente instrumental, para garantir uma liberdade que se realizaria na esfera privada (e no mercado). O vínculo entre participação política e autonomia nunca aparece.
No mundo de Against democracy, não existe gargalo na informação, só falta de conhecimento. Não existe produção social das preferências, só desinteresse político atávico. Não existe dominação social, no máximo desigualdade. Não existe conflito estrutural; na verdade, o problema da política é dividir as pessoas, nos tornar inimigos uns dos outros. Por isso, menos participação é melhor, por facilitar a produção de mais harmonia social.
Brennan também escolhe o sparring adequado. A alternativa democrática “radical” no horizonte é sempre o deliberacionismo. Fica fácil bater no “irrealismo” de quem quer uma democracia aprofundada. E o problema central de sua própria perspectiva, o exílio do conflito de interesses, não é desafiado.
Ele conclui que a democracia não presta e é melhor passar a um governo de especialistas. Os teóricos da democracia liberal não são tão francos, mas também acham que em geral o problema da democracia é o povo – que deve ser afastado do processo decisório, a ser monopolizados pelas elites. E é sua presença excessiva que faz o regime democrático entrar em crise.
O livro expõe os argumentos com nitidez. O que fica de sua leitura, para nós, à esquerda, é uma lição também nítida. Não encontraremos saída se não formos capazes de retomar uma crítica radical à democracia restrita que a ordem capitalista permite, se ficarmos acomodados como guardiões da ordem que está se esfarelando, se permitimos que o descontentamento com o caráter elitista e excludente do sistema seja malandramente usurpado pela extrema-direita.