Domingo domingou, e domingará muito mais

Atualizado em 24 de setembro de 2025 às 16:10
Brasileiros contra a PEC da Blindagem e anistia em Brasília. Foto: reprodução

Acompanhar a vida política brasileira costuma ser tarefa exaustiva. O espetáculo mais frequente não se faz de grandes decisões de Estado, mas de intrigas miúdas, chantagens calculadas e negociações de bastidores tão repetitivas que, além de se autoesgotar, nos esgota a todos. Tudo isso embalado em selfies e lives broxáveis, como se o fascismo local, em sua versão galinha verde, acreditasse que a transmissão contínua do ridículo pudesse convertê-lo em grandeza.

De tempos em tempos, contudo, algo se desloca. Raros como estrelas visíveis em noites paulistanas, surgem dias em que a história decide se mostrar de forma quase palpável. Mais extraordinário ainda é quando esses dias se encadeiam, formando não apenas um instante de respiro cívico, mas uma semana inteira de acontecimentos que parecem anunciar outro futuro. A semana em curso pertence a essa categoria.

O palco central foi, naturalmente, Nova Iorque. Em dois pronunciamentos na ONU, Lula ofereceu palavras medidas, firmes, capazes de condensar dignidade sem se deixar contaminar pelo exibicionismo. Frases simples, límpidas, de clareza quase desarmante, que não precisaram elevar o tom para alcançar todos os ouvidos — e talvez por isso se fizeram ainda mais intensas. A recepção dos presentes dispensou comentários.

Ontem, no discurso de abertura da Assembleia Geral, a cena quase cinematográfica de Emmanuel Macron, em gesto espontâneo que escapou ao ritual diplomático, levantando-se e correndo atrás do presidente brasileiro para lhe dizer, com certo fervor juvenil, que ouvira ali um guerreiro, ficará como símbolo da posição que o Brasil volta a ocupar. Ali, no salão de mármore verde, o país mostrou que recuperou voz, e não apenas sotaque.

E, se essa cena não fosse suficientemente ilustrativa, tivemos ainda o “momento laranja”. Trump, criminoso sentenciado em pelo menos três processos, habituado a variações de humor tão instáveis quanto previsíveis, resolveu dirigir palavras simpáticas a Lula. Bastou para que o bolsonarismo perdesse o rumo. Foi um estouro da boiada, com gado subindo em árvore.

As reações foram de perplexidade quase pueril, como fiéis pentecostais flagrando o pastor em mesa de pôquer, uísque numa mão, cigarro na outra e companhia comprometedora no colo. Nada, contudo, que mereça espanto, pois o que Trump diz vale tanto quanto uma sentença redigida por Sergio Moro. Quem acreditar em súbito arroubo de estima de Trump pelo presidente brasileiro é capaz de acreditar na aparição de Jesus, em carne e osso, na goiabeira para Damares. Nem mesmo Trump acredita no que Trump diz. São palavras ocas, lançadas apenas para semear confusão, é lixo retórico a ser lançado na primeira fossa.

Mas nossa semana virtuosa não se encerrou no brilho diplomático de Nova Iorque. Brasília nos ofereceu, em sua conhecida coreografia de esgoto, a abertura do processo de cassação de Eduardo Bananinha. Nada que mereça entusiasmo. Não há ali moral nem pudor: apenas o instinto elementar de sobrevivência do centrão, pressionado pelo risco real trazido pelas ruas do domingo passado. Jogaram-no ao mar como quem se desfaz de carne estragada para não comprometer o banquete inteiro. E lançaram-no longe, muito além da costa, sem boias, para que o restolho nazifascista fosse logo engolido pelas profundezas. O gesto, mais que punição, é diagnóstico: a aliança com o bolsonarismo deixou de oferecer futuro. Esse é o termômetro político mais preciso que todos os gráficos.

Ato contra a PEC da Blindagem. Foto: reprodução

Ainda há pouco, a chamada PEC da Blindagem foi oficialmente enterrada. Depois de sua aprovação ruidosa na Câmara, sob aplausos do centrão e da trupe bolsonarista, imaginava-se que a proposta seguiria seu curso natural, blindando privilégios e perpetuando impunidades. Mas as ruas e as redes, em rara sintonia, trataram de encurtar o fôlego dos entusiastas da medida. O Senado, atento ao custo político do disparate, sepultou a PEC, sem tiro de misericórdia. Com 26 votos contrários e nenhum favorável, o projeto está definitivamente arquivado, pois o regimento da Casa não permite recurso em casos como este. Foi uma derrota exemplar: não apenas de um projeto, mas de uma mentalidade que acreditava poder legislar, descaradamente, em causa própria, contra a sociedade.

O que estamos presenciando é, em grande medida, fruto da ação concreta do povo nas ruas. O domingo anterior consolidou a virada que as pesquisas apenas insinuavam. A mobilização popular não se limitou a mostrar força: provou que o fascismo, longe de ser uma ameaça majoritária, está sendo empurrado de volta a um espaço estreito, reduzido ao seu nicho. Nicho fecal. Ponto de inflexão claro: a sociedade brasileira não está condenada ao pesadelo autoritário como destino inevitável.

Mas não nos enganemos. A vitória é real, mas ainda é respiratória. Não se trata de troféu a ser exibido, mas de fôlego a ser preservado. É preciso sustentá-la com disciplina e luta, pois o fascismo não se dissolve com a prisão de Bolsonaro e de seus generais. A extrema-direita sabe adaptar-se: recolhe-se, disfarça-se, reaparece sob novos rostos. Não se pode reduzi-la a um episódio encerrado.

Estamos diante de uma possibilidade inédita de iniciar um ciclo virtuoso de conquistas políticas e sociais. É como se, por um instante, nos fosse dada a rara oportunidade de abrir janelas num edifício abafado há décadas. Mas janelas abertas deixam entrar o vento, e o vento pode trazer pó, frio, desconforto. A travessia exigirá atenção e cuidado constantes.

É tempo de tomar fôlego, mas não é tempo de descanso. É tempo de avançar com consciência. O momento é de vitória, sim, mas é uma vitória que respira apenas enquanto dela cuidamos. Se afrouxarmos, ela se extingue. Se mantivermos o tônus, ela ilumina.

Vivemos uma semana grandiosa. Não pelo espetáculo diplomático, nem pelo oportunismo do centrão, tampouco pelo tropeço verborrágico de Trump, pela iminente cassação de Eduardo Bananinha, ou pelo enterro formal da PEC da Blindagem. A semana é grandiosa porque mostrou que existe, finalmente, uma chance real de transformar este instante em futuro. Mas o futuro não se escreve sozinho. O desafio é compreender que a vitória é rara e frágil, e que a única forma de mantê-la é não esquecendo, nunca, que ela ainda depende de nós.