Domingo sem lei: lavajatismo de Moro cevou o boçalnarismo e deu voz aos neofascistas. Por Ricardo Kotscho

Atualizado em 1 de julho de 2019 às 17:17

Publicado no Balaio do Kotscho

Manifestação pró-governo no último domingo (1)

POR RICARDO KOTSCHO

Para prender um homem, destruíram um país, poderão escrever os historiadores do futuro sobre estes tempos tenebrosos.

Rasgaram a Constituição no embalo do lavajatismo de Sergio Moro, que cevou o boçalnarismo, e deu voz aos neofascistas broncos, cada vez mais ousados, como se fossem os donos do mundo.

Num país de 208 milhões de habitantes, um bando de crentes da seita morista saiu às ruas no domingo para assustar o resto do país, como se fossem os donos do mundo.

Com faixas, bonecos e gritos histéricos, enrolados em bandeiras nacionais, saíram em defesa do ex-juiz, pedindo o fechamento do Congresso e do STF.

“Eu vejo, eu ouço”, escreveu Moro no Twitter, aderindo ao discurso messiânico dos seus seguidores.

Se Bolsonaro bobear, seu ministro da Justiça vai acabar tomando o lugar de líder da extrema direita.

Embora tenham diminuído de tamanho, os fanáticos cresceram em estupidez e nas ameaças às instituições.

A começar pelo enlouquecido general Augusto Heleno, apresentado como tutor de Bolsonaro, que vociferou em Brasília, empoleirado num carro de som:

“O ministro Moro (…) está sendo colocado na parede para tirarem da cadeia um bando de canalhas que afundaram o país. Acho que é uma calhordice quererem colocar o ministro Sergio Moro na situação de julgado ao invés de ser juiz. Estão querendo inverter os papéis e transformar um herói nacional num acusado.

Com aqueles óculos escuros dos generais folclóricos dos anos 50 do século passado e camiseta verde-amarela, Heleno chamou os adversários políticos de “esquerdopatas, derrotistas e calhordas”, ao lado de Eduardo Bolsonaro, o filho presidencial para quem basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal.

Desse jeito, logo o capitão vai ter que tomar conta do general-tutor.

Para quem acompanhou pela televisão, com imagens de longe, não deu para ter ideia do que se falou durante o protesto a favor, pois os repórteres tinham que seguir sempre o mesmo script, repetido o dia inteiro: manifestantes dão apoio a Sergio Moro, ao pacote anticrime e à reforma da previdência.

No asfalto, a conversa era outra, bem mais beligerante, como se pode constatar nas frases que recolhi ao acaso no noticiário da Folha:

  • “Esquerda escrota, pare de atrapalhar!” (cartaz na avenida Paulista).
  • “General Mourão, faça a intervenção. Fim do congresso e do STF” (idem).
  • “Eu estou vendo que o povo está bravo! O povo quer que o Congresso Nacional acorde!” (orador no carro de som do Vem pra Rua).
  • “Rodrigo Maia, presta atenção, nós queremos a reforma de 1 trilhão” (idem, como se essa bolada fosse destinada aos aposentados).
  • “Todo mundo aqui tem que pressionar os deputados pela reforma. É para fazer bullying digital, sim” ( orador no caminhão do movimento Nas Ruas).
  • “A imprensa comprou a versão da Intercept. Perdeu o norte, transformou jornalismo em militância” (Irineu Ramos, que se apresentou como jornalista e segurava um cartaz onde estava escrito “Imprensa Inimiga do Brasil”).
  • “Esses diálogos são falsos na sua origem. Quem está divulgando são canalhas que querem atemorizar os juízes, os promotores, os que querem acabar com essa rede de corrupção” (jurista Modesto Carvalhosa no carro de Som do Vem pra Rua).
  • “Como pode um preso em Curitiba ser tratado como um pop star?” (Luciano Hang, dono das lojas Havan, o mais feroz defensor de Bolsonaro).

Além de Carvalhosa e Hang, havia poucas celebridades da direita na Paulista: a atriz Regina Duarte, o cantor Latino e o apresentador Otávio Mesquita, o que dá uma ideia do perfil dos apoiadores do ex-juiz, entronizado pelo general Heleno como herói nacional.

O casamento tóxico do lavajatismo com o boçalnarismo, celebrado nas manifestações pelo impeachment de 2016, gerou esta exótica paisagem humana, que deixou 43 milhões de trabalhadores sem renda e a indústria pesada nacional quebrada.

“A escadinha disso tudo foi terrível: Moro ajudou a derrubar a esquerda, sua esposa fez propaganda para Bolsonaro e ele agora assume um cargo político. Não podemos olhar isso e achar natural”, escreveu a procuradora Monique Chequer nos diálogos agora divulgados pelo site The Intercept.

De fato, nada disso é natural, normal ou legal, mas para Moro e seu sócio Dallagnol o que importa é o resultado: Lula preso e Bolsonaro no governo.

Tudo isso poderia não ter acontecido se, desde o início da Operação Lava Jato, em 2014, a imprensa tivesse cumprido seu papel republicano.

Sob o título “Lava-jornalismo”, o editorial desta semana da Agência Pública, da qual sou conselheiro, resume o que aconteceu:

“Um dos maiores erros do jornalismo, sem entrar no mérito dos interesses políticos, está na origem da cobertura: a adesão incondicional, abdicando de sua função investigativa, crítica, questionadora e reflexiva sobre a precária narrativa que a força-tarefa passou a ditar a partir da delação do então diretor de Abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto da Costa”.

Do delator Costa, há tempos já em liberdade, não se teve mais notícias, mas os estragos feitos no sistema político e na economia do país ainda deixarão sequelas por muitas décadas.

O pior de tudo, certamente, foi o surgimento desta furiosa seita fundamentalista que foi às ruas no domingo e veio para ficar, dando uma banana para os fatos, a democracia, a civilidade, o Estado de Direito e a Constituição.

E vida que segue.