"Duas coisas importam na vida. Para o homem, a mulher. Para a mulher, o dinheiro."

Atualizado em 8 de junho de 2022 às 2:14

OS JORNALISTAS não mudaram tanto assim desde essa cena. Ela tem 50 anos, e foi um dos pontos altos da estréia de um cineasta que posteriormente se tornaria um mito, Jean-Luc Godard. O filme se chama À Bout de Souffle (Sem Ar), e apareceu no Brasil como O Acossado. Godard, aos 29 anos, trouxe ao cinema o conceito de uma idéia na cabeça e uma câmara na mão. Godard fez O Acossado com uma câmara na mão. Inovou. Era o início da Nouvelle Vague, o jeito francês de fazer cinema.

O tumulto nas perguntas, a dispersão nos assuntos, a luta e o grito para ser ouvido. Fotógrafos inconvenientes que gritam o nome da pessoa em busca de atenção. São mais ou menos assim as entrevistas coletivas ainda hoje, em plena Era Digital.

Educação definitivamente não funciona. Quero dizer, esperar delicadamente que dêem a palavra a você significa sair de uma coletiva sem falar nada. Lembro das lutas épicas pela palavra nos Rodas Vivas de que participei, nos anos 90. Era muito jornalista para um só entrevistado, hoje me parece claro. Mais ou menos como se dividissem uma pizza por dez pessoas.

Bem, o jornalista é parecido. Como, no fundo, o jornalismo: impresso ou digital, o que conta é o conteúdo. Fato.

Mas o cinema é inteiramente outro.

Não estou falando das imagens em branco e preto. A questão é a essência. Quando um diretor — estreante, além do mais — poderia colocar no ar frases como algumas destas da cena?

* “Sentimento é um luxo que as mulheres não se permitem.”
* “Duas coisas importam na vida. Para o homem, a mulher. Para a mulher, o dinheiro.”

Godard seria destroçado como um misógino, um homem repulsivo, um ser nocivo não apenas para as mulheres como para a raça humana. A cantada que ele dá na jovem repórter linda, Patrícia, vivida por Jean Seberg em seu esplendor deslumbrante, seria também abominada. Feministas de meia idade, cabelos tingidos e botox em dia, pegariam uma AK 47 para justiçar o monstro view.

Godard seria inviável hoje.

Não é uma boa notícia para o cinema.  Domingo que vem é o dia do Oscar. Você já deve ter visto os filmes que concorrem. Algum faz, realmente, diferença?

Provocações, num mundo patrulhado e tiranizado pelo Politicamente Correto, não são aceitas. Há um ambiente de tal forma controlador e rígido que elas morrem antes de nascer. Sobraram efeitos especiais para um cineasta tentar se fazer notar enquanto a platéia come estrondosamente pipoca, como James Cameron em Avatar.

Penso na derradeira pergunta, aquela para a qual Patrícia, enfim, consegue chamar a atenção. “Qual a sua maior ambição?”, ela pergunta ao escritor. “Alcançar a imortalidade. E morrer.”

Godard, vivo aos 80 anos, cumpriu, felizmente, apenas a metade da grande frase. É imortal. Mas se tivesse surgido em nossa época teria que procurar outra profissão.