Duelo de filósofos, realismo mágico e estranheza: o novo romance do polêmico escritor Salman Rushdie. Por Luísa Gadelha

Os djins são conhecidos na cultura árabe como criaturas sobrenaturais, feitas de fogo sem fumaça, que vivem em um mundo paralelo ao nosso. São caprichosos, impulsivos e inconstantes, intervindo na vida humana quando lhes convém, seja para ajudar ou para praticar o mal.

O novo romance do controverso escritor inglês de origem indiana Salman Rushdie, Dois anos, oito meses e 28 noites (Companhia das Letras, 335 páginas, tradução de Donaldson M. Garschagen), é uma mistura de Ocidente e Oriente, com elementos de ambas as culturas, personagens reais e inventados e uma grotesca guerra dos djins nos dias atuais.

O filósofo muçulmano Ibn Rushd – ou Averróis, como é conhecido no Ocidente – viveu na Andaluzia, no século XII, e dedicou-se a estudar a obra aristotélica e a desenvolver a lógica e o racionalismo. No romance, Ibn Rushd é visitado por Dúnia, uma djínia fascinada pelos seres humanos, a tal ponto que adquiriu suas paixões, tendo virado amante de Ibn Rushd e a ele se dedicado durante dois anos, oito meses e 28 noites – ou exatas mil e uma noites.

A obra é claramente inspirada na compilação de histórias das Mil e Uma Noites, com a diferença de que Dúnia é uma espécie de anti-Sherazade: enquanto a princesa dos contos árabes conta histórias para escapar da morte, Dúnia ouve histórias que poderiam matar a si e ao marido: Ibn Rushd, com suas ideias filosóficas em desacordo com o Corão, lhe conta como a razão pode ser independente da fé.

Embora o período em que Dúnia e Ibn Rushd viveram tenha sido curto, uma extensa prole foi gerada, de linhagem matriarcal, cujos descendentes se espalharam pelos continentes, chegando à América. A característica típica e comum desses filhos da djínia, que desconhecem sua origem, é a ausência do lóbulo auricular.

Dando um salto no tempo, chegamos à Nova York dos dias de hoje onde uma estranha tempestade inaugura uma “nova era de irracionalismo” e uma “colossal fragmentação da realidade”: fatos estranhos e ilógicos começam a ocorrer, como um jardineiro que não toca mais o chão, levitando de forma intrigante, um quadrinista que vê aparecer o super-herói que criou em seus gibis ou a bebê que tem o dom de adoecer os corruptos à sua volta (precisamos de uma dessas no Brasil…).

Na verdade, a tênue linha que separa o nosso mundo do mundo dos djins foi rompida e Dúnia deve reunir seus descendentes para a guerra dos mundos, a grande batalha dos djins luminosos contra os djins tenebrosos.

Mr. Gerônimo, o jardineiro que estranhamente deixa de tocar o chão, desconfia de que sofre de uma “falha gravitacional”. Indiano radicado nos Estados Unidos, o nome original de Gerônimo é Hieronymus, o mesmo do famoso pintor Bosch, que concebeu o jardim das delícias. Mr. Gerônimo apaixona-se pela filha de Bento Elfenbein, que se orgulha de trazer o nome do filósofo Bento, ou Baruch, de Espinoza).

O romance, assim, está cheio de referências e insinuações a artistas, filósofos e escritores antigos e atuais, bem como a cineastas e quadrinhos da cultura pop, o que pode tornar a leitura um pouco difícil para leitores não familiarizados a tais alusões.

Para além do realismo mágico e da abundância de informações no romance de Salman Rushdie, sua prosa é divertidíssima, de humor fino e sarcástico. O duelo entre Averróis e seu rival, o filósofo Ghazali, permeia toda a obra, no embate entre razão e fé, racionalismo e estranheza, a inexplicável estranheza que começa a ocorrer após a tempestade.

Outra temática que perpassa a obra, de maneira um pouco sutil, é a imigração dos orientais para o Ocidente, a adaptação e até mesmo a sensação do “sentir-se em casa”. (“Talvez a doença – a estranheza parecia ser agora uma doença social – tivesse sido trazida para a América por algumas dessas pessoas, indianos, paquistaneses, bengaleses, do mesmo modo como a devastadora epidemia de aids tinha aparecido em algum ponto da África Central e chegado aos Estados Unidos no início da década de 1980”).

Assim como nos contos das Mil e Uma Noites, há histórias dentro de histórias em Dois anos, oito meses e 28 noites; uma profusão de personagens peculiares e divertidos, com codinomes como A Dama Filósofa ou A Bebê da Tempestade. Embora o título “mil e uma noites” se deva ao fato de que os árabes não apreciavam números redondos, 2 anos, 8 meses e 28 dias passa a impressão de uma certa simetria ou equilíbrio (28-28).

Salman Rushdie nasceu em Mumbai (antiga Bombaim) e hoje é súdito britânico, portando inclusive o título de sir. Seu sobrenome, Rushdie, foi tomado pelo seu pai em homenagem a Ibn Rushd (Averróis). O escritor recebeu em 1988 uma fatwa (pronunciamento legal do islã) do Aiatolá Ruhollah Khomeini, então líder do Irã, ordenando sua execução após a publicação do seu livro Versos Satânicos, que foi considerado ofensivo ao poeta Maomé. Devido a isso, Salman Rushdie teve que viver no anonimato por alguns anos, sob proteção da polícia inglesa.

A fatwa parece ter dado mais notoriedade a Salman Rushdie, que acabou ganhando o prêmio British Book em 1995, com o romance seguinte após Versos Satânicos, O Último Suspiro do Mouro. A leitura de Dois Anos, Oito Meses e 28 Noites vale não só pela brincadeira com os nomes dos personagens, suas estranhezas e a fartura de referências diretas e indiretas, mas também pela escrita de Salman Rushdie, que consegue como ninguém conduzir um bom romance.

Luísa Gadelha

Luísa é graduada e mestra em Letras, graduanda em Filosofia, ama literatura desde sempre e quadrinhos há alguns anos, tem preferência por romances (longos), sejam clássicos ou contemporâneos e se esforça - ou nem tanto - para ler mais poesia. Isso quando não está vendo séries.

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Luísa Gadelha

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