“É claro que pagamos impostos”: pastora da Suécia contou ao DCM por que igrejas e religiosos são tributados

Atualizado em 7 de setembro de 2020 às 7:57
Pastor Valdemiro Santiago e Bolsonaro

Um projeto aprovado pelo Congresso pode anular dívidas tributárias de igrejas acumuladas após fiscalizações e multas aplicadas pela Receita Federal, diz o Estadão.

O valor do “perdão” seria de quase R$ 1 bilhão.

Bolsonaro tem até 11 de setembro para decidir se mantém ou não a mamata.

No fim de abril, ele promoveu uma reunião entre o deputado federal David Soares (DEM-SP), filho do missionário R. R. Soares, e o secretário especial da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, para discutir os débitos das igrejas.

O presidente já ordenou à equipe econômica “resolver o assunto”, mas os técnicos resistem. O sujeito já declarou querer “fazer justiça com os pastores, com os padres, nessa questão tributária”.

Uma lei aprovada em 2015 tentou colocar um ponto final às cobranças, isentando valores pagos em forma de ajuda de custo de moradia, transporte e formação educacional.

Em um vídeo publicado nas redes sociais em outubro de 2016, o missionário R. R. Soares aparecia ao lado do picareta Eduardo Cunha agradecendo pela aprovação da lei.

Em 2016, o DCM contou como é que isso funciona na Suécia numa reportagem de Cláudia Wallin:

“É claro que pagamos impostos”, diz a pastora sueca Ulla Marie Gunner, com a naturalidade com que um Malafaia pede o cartão de crédito de um fiel. 

“Jesus já disse: ‘dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus’”, recita instantaneamente a pastora na igreja evangélica Immanuelskyrkan (Igreja de Emanuel), no centro de Estocolmo.

Ainda que eu falasse a língua dos anjos, não conseguiria explicar a Ulla Marie como foi que Eduardo Cunha conseguiu abrir o mar regimental do Congresso para a travessia do seu “jabuti”: a emenda da isenção tributária às igrejas foi incluída – na surdina – na MP 668, que tratava originalmente do aumento de impostos sobre produtos importados. 

O milagre do imposto zero foi testemunhado por multidões paralisadas em um transe coletivo, conto à pastora. Ao som das harpas dos querubins, os pastores se regozijaram com a caridade dos congressistas e do povo, sempre de joelhos. Com Deus e Cunha no comando, revelo à incrédula religiosa sueca, foi criado no Brasil o 11.o mandamento: “Nada se pagará”.

É uma graça que não alcança os homens de boa fé da Suécia.

Como qualquer pastor sueco, Ulla Marie Gunner paga impostos sobre o salário e qualquer tipo de benefícios que recebe da igreja – incluindo casa, carro e eventuais ajudas de custo. E como toda igreja sueca, a Immanuelskyrkan é taxada pelo Leão por qualquer renda que não seja empregada para fins estritamente cristãos. 

“E isso é o certo. A igreja deve ser parte da sociedade, e não uma entidade à parte, distanciada dos fiéis e da contribuição para o bem-estar coletivo”, diz a pastora.

Vou em busca de informações no Skatteverket, o Leão sueco, que afirma: só não há impostos sobre os imóveis ocupados pelos templos, e até o dinheiro das doações dos fiéis pode ser tributado – caso seja utilizado em benefício dos pastores, e não dos crentes. 

“Se o pastor investir o dinheiro dos donativos em ações ou aplicações, terá que pagar impostos sobre os rendimentos, caso tais ganhos não sejam aplicados em atividades religiosas”, pontua Gunilla Landmark, analista fiscal do Skatteverket.

A pastora Ulla Marie Gunner

“Se o pastor ou a igreja comprarem uma fazenda, um hotel ou qualquer outro negócio com capital obtido através de doações de fiéis, também terão que pagar impostos. Se comprarem um imóvel ou um negócio no exterior, também pagarão impostos”, prossegue Gunilla.

O raciocínio sueco é o oposto do credo brasileiro: a Igreja, assim como também qualquer outra entidade sem fins lucrativos, paga impostos ao Estado.

“A premissa básica é a seguinte: todos, em uma sociedade, têm que pagar impostos e ser tratados de maneira igualitária. Tanto as igrejas, como os rebanhos”, resume a analista da autoridade fiscal sueca.

Não se pode controlar cada krona (coroa sueca, a moeda nacional), ela diz. Mas a autoridade fiscal detém, segundo Landmark, um eficiente sistema para verificar se as igrejas e os pastores estão fazendo o que devem.

“As igrejas devem comprovar que estão utilizando o dinheiro especificamente em obras de caridade e atividades afins”, diz Gunilla Landmark. “Se o dinheiro for empregado para fins religiosos, as igrejas podem ter certas deduções fiscais. Caso contrário, pagam impostos integrais”.

Na centenária Immanuelskyrkan, que congrega tradições batistas, calvinistas e metodistas, a pastora Ulla Marie confirma:

“Se servirmos café aos fiéis, ou ganharmos dinheiro de qualquer outra forma, temos que pagar impostos”.

Os tempos são outros: na Estocolmo dos anos 20, a hoje abastada Igreja de Emanuel era uma pobre congregação.

“Naquela época, muitos fiéis doavam porcos ou alimentos”, conta Ulla Marie. “Até a década de 60, nossa igreja vivia apenas dos donativos, e os pastores tinham que trabalhar o tempo todo para tentar obter doações dos fiéis”.

A partir dali, deu-se uma reviravolta – em vez de pedir dinheiro aos fiéis para suas atividades religiosas e de caridade, a Immanuelskyrkan resolveu entrar no mundo dos negócios.

“Várias congregações menores haviam se juntado a nós, ao longo dos anos, e todas tinham seus próprios bens. Aos poucos, fomos idealizando diferentes atividades, e hoje administramos um hotel, assim como diversos imóveis”, diz a pastora.  

Estamos a poucos passos do hotel da congregação, o Birger Jarl. É um quatro estrelas, com mais de 270 quartos, no centro nobre de Estocolmo.

“Somos hoje uma igreja muito rica, até porque somos muito bons administradores. E pagamos impostos por isso.”

A igreja de Ulla também possui asilos de idosos, assim como acomodações para estudantes. A Immanuelskyrkan recebe ainda contribuições da Prefeitura para gerenciar parte de suas obras sociais.

“Mas pagamos impostos por isso”, frisa a pastora. “Como pastores, temos ainda a possibilidade de viver em apartamentos de nossa igreja. Mas também somos taxados por isso.”

Vamos comparar: no Brasil, a fonte de renda das igrejas inclui, além do dinheiro recebido diretamente dos fiéis, a venda de bens e serviços e os rendimentos com ações e aplicações. É uma arrecadação bilionária, que apenas em 2011 representou R$ 20,6 bilhões. Só em benefícios fiscais, as organizações religiosas brasileiras recebem cerca de R$ 4 bilhões anualmente. Também não há tributação sobre ajudas de custo, como moradia e transporte para os pastores.

Com o “jabuti” de Cunha, os profissionais da fé ficaram livres da cobrança de impostos sobre as “comissões” que ganham por recolher mais fiéis, e mais dízimos. Muitos pastores recebem um salário baixo, que é tributável – o grosso vem por fora, com as “comissões” que, a título de ajuda de custo, chegam aos 100 mil reais. Sob as bênçãos do Congresso, as igrejas evangélicas poderão ainda conseguir a anulação de autuações fiscais que passam de 300 milhões de reais.

Na Suécia, só Jesus salva os pastores. Assim como no Brasil, qualquer pessoa pode abrir uma igreja aqui. Mas o primeiro ato obrigatório é registrar a congregação no Kammarkollegiet: trata-se da mais antiga autoridade pública do país, criada, nos idos de 1539, quanto o rei Gustav Vasa decidiu estabelecer uma agência dedicada a lidar com a coleta de impostos no reino.

“Uma vez registrada, a igreja recebe um código fiscal, que é repassado automaticamente a todas as autoridades fiscais”, diz Stefan Berg, um dos gerentes do Kammarkollegiet.

Pergunto à pastora Ulla Marie se ela considera os impostos excessivos, em se tratando de igrejas.

“A Igreja deve assumir suas responsabilidades na sociedade em que atua. Como cristãos, não podemos nos distanciar de nossas obrigações sociais e dizer, ‘não temos nada a ver com isso’”, acentua a pastora.