“E daí?” não é indiferença. É um chamado à ação extremista. Por Gilberto Maringoni

Atualizado em 29 de abril de 2020 às 18:49

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Bolsonaro

O “E daí?” de Bolsonaro é muito mais do que descaso e falta de empatia e solidariedade para com o outro. Expressa também um dogma de fé, aparentado com eugenia ou higienização social. Não se trata apenas de omissão diante da tragédia. É algo profundamente perverso. É a oportunidade de concretizar a ideia de que “trinta mil devem morrer” para o país melhorar. Trinta mil que podem ser sessenta, cento e vinte mil ou quanto mais forem.

É a certeza de que quem morre não sou eu ou os meus. São os que moram longe, os de rostos indefinidos, sem parentes importantes. Os meus têm recursos e assistência de primeira, como tiveram Heleno e Wajngarten, contaminados após convescote em Miami e aparentemente curados em poucas semanas.

O “E daí?” é o grito de guerra a invocar o fogo purificador da morte em escala industrial. Vai além da indiferença passiva de Bartleby, o escriturário de Melville. O “E daí?” é política ativa, é o pacto da austeridade, o desmonte premeditado do SUS e dos serviços de seguridade social, do dinheiro que não chega na ponta e da própria possibilidade de se diagnosticar a crise. Faltam testes ao mesmo tempo em que se sucateia o IBGE, comprometendo levantamentos estatísticos sobre emprego e renda, tudo imolado no sacrossanto teto de gastos (que voltará como Cristo redivivo após um incerto fim da pandemia). O “E daí?” está estampado nos olhos mortiços e na fala insossa do ministro da Doença e nos ucasses delirantes do chanceler de fancaria.

Faz parte da mesma lógica dos apelos à volta da atividade econômica, que equivalem ao dístico “O trabalho liberta” que encima o portão principal de Aushwitz. Tudo liberta no mundo do laissez-faire e do laissez-mort.

O ambiente se completa em uma tensão latente a tomar conta da sociedade. Ela explodirá mais cedo ou mais tarde. Provavelmente é o que deseja quem se expressa com o “E daí?”. Nesse diapasão, o caos e a confusão são as melhores maneiras de se pautar o país e seguir no poder. O caos pode vir no primeiro quebra quebra de uma agência da Caixa Econômica, com filas intermináveis de desesperados em busca de uma ajuda que não chega, pode vir no saque de um supermercado ou de uma fagulha fatal no mato seco da desesperança social.

O ato seguinte será transformar o “E daí?” no pretexto para uma ação do Exército, da polícia ou das milícias sobre pobres e miseráveis em busca de algo para se manterem de pé.

A oposição precisa se colocar a altura desses desafios. São mais importantes do que montagem de chapas para prefeituras, discussões internistas em disputa de aparelhos ou apelos a soluções mágicas.

Há o que fazer. Muito.