Categories: DestaquesPolítica

“É estarrecedor que juízes possam mandar enjaular pessoas com base em falsificações feitas por eles mesmos”

Por KATARINA PEIXOTO, em seu Facebook. Katarina tem doutorado em filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestrado em filosofia na mesma universidade e é graduada em Direito na Universidade Federal de Pernambuco. 

 

Ontem dediquei algumas horas a ler decisões de juízes, desembargadores e ministros. Adoeci um pouco mais e espero conseguir fazer algo de positivo com o chorume que li.

Enunciados falsos podem fazer sentido. E nada há de trivial nisso. Um dos Diálogos platônicos de maturidade, O Sofista, é dedicado ao estatuto lógico dos enunciados falsos e sobre o passado (ou, mais precisamente, sobre o que não é). Desde O Sofista, avançamos na literatura secundária mas, como todo problema filosófico nos exige, não há uma solução para o estado do problema e, vale dizer, não deve haver. A filosofia não existe para resolver os problemas do verdadeiro e do falso, do que existe e do que não existe, mas para nos ajudar e entender e a descrever a natureza e o escopo desses problemas, inclusive na vida cotidiana. Inclusive frente ao poder político e ao direito.

Fui dormir com uma pergunta na cabeça: se um juiz ou desembargador brasileiro prescrever uma receita de ovo frito e, com base nela, autorizar a que se enjaule um cidadão antipático à opinião do Jornal Nacional e da Revista Veja, por que razão ele não estaria autorizado a fazê-lo?

Existe interpretação e há teorias da interpretação, as chamadas hermenêuticas. Existem distinções de método. Essas coisas não anulam e nunca anularão a ruptura entre o verdadeiro e o falso e, se o fizerem, nem são interpretação, nem hermenêutica, mas pilantragem, quando não, crime, caso envolvam violação documental e ideológica, tipificadas no código penal, ou o uso mal intencionado e vil de enunciados textuais, a fim de cometer atos sem amparo legal.

Há três casos de falsificação documental que extrapolam em muito a complacência estamental da hermenêutica jurídica e que dão a ver a seriedade dessa questão, acima.

Por ocasião da Ação 470, o caso do mensalão, um ministro do STF arregimentou e violou o sentido de uma doutrina, para produzir sua acusação. A chamada doutrina do “domínio do fato”, inventada e utilizada como mera arregimentação, é, em termos estritos, uma falsificação do que Roxin produziu. Na sua versão brasileira, o que ocorreu foi mais grave, em termos lógicos e penais, do que uma dublagem: a arregimentação serviu para se inventar uma teoria penal da responsabilidade objetiva que não visa a, como manda a filosofia penal moderna e o direito penal brasileiro e a teoria do domínio do fato, segundo Roxin, buscar a pessoa ou as pessoas de direito que cometeram o crime (com base na identificação particular, subjetiva, no encadeamento de responsabilidade diante de crimes de magnitude e escopo coletivo), mas a atribuir à peculiar noção de objetividade ali exposta, uma totalidade adhoc tal que configure um crime coletivo, por associação qua associação. É como o crime cometido por um cnpj, uma aberração semântica, jurídica, penal, processual penal, judicial e real.

Que uma mídia familiar oligárquica, sonegadora e vinculada a regimes de exceção e deles advogada permanente faça isso, não surpreende. Que isso entre para a jurisprudência brasileira é uma violação de sentido naquilo que define o que se passou a chamar de condições de sentido de um enunciado: as condições para que ele seja dito verdadeiro ou falso.

Ainda assim, essa arregimentação, na medida exata em que não passa disso, pode fazer algum sentido, como falsidade. O acusador sofista, aposentado após a prestação de seu serviço, ao menos se retirou de cena.

Outra falsificação grotesca, também de escopo nocivo e corrosivo da vida institucional do país, foi cometida pelo juiz moro. Ele conseguiu transmutar a descrição, feita por Vannuci, o cientista político italiano, no célebre “O Fracasso da Operação Mãos Limpas”, segundo a qual a operação teria produzido uma “deslegitimação da política”, em prescrição. Num artigo cometido em revista especializada, cita o Vannuci para defender, vejam só o desvio além da hermenêutica: operações de combate à corrupção deveriam promover a deslegitimação da política.

Dizer que algo produziu a deslegitimação da política não é, por critério algum, dizer que algo deve produzir a deslegitimação da política. Pior: identificar ambos os enunciados ao citá-los como idênticos é falsificar o enunciado original.

A terceira falsificação escandalosa que autoriza a gravidade da questão acima, a respeito do ovo frito, foi cometida há muito pouco tempo, por desembargador federal, prontamente apoiada por uma maioria de falsificadores ou complacentes com a falsificação.

A propósito da análise de representação contra as violações, como tais reconhecidas pelo próprio TRF4, do juiz sergio moro, da Lei Orgânica da Magistratura, que veda o expediente delinquente de grampear advogados e violar a relação entre esses e seus clientes, os senhores desembargadores não somente arregimentaram um filósofo, como o fizeram por segunda mão, via Apud, de texto, inacreditavelmente, cometido por um ex-ministro do STF. O ex-ministro comete a inversão completa e falsificadora do sentido de “exceção jurídica” analisado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben. Eros Grau preda o que diz Agamben e os senhores do TRF4, sem timidez nem respeito ao texto do Agamben, aliás com boa tradução para a língua portuguesa, e para a vergonha e a explicitação de um grau periculoso de indigência intelectual e jurídica que assola e ameaça as instituições do país, julgam válida a falsificação do sentido de “exceção jurídica” e usam uma falsificação para assegurar outra.

Trata-se de uma falsificação de segunda ordem, para escândalo de qualquer pessoa letrada. Essa falsificação é grave e nos leva a muitas questões, igualmente graves: se e quantos outros casos há, de falsificações gritantes de teorias, arregimentadas por juízes que não respondem pelo que fazem, não prestam contas a ninguém e, por isso, mandam para a cadeia e inviabilizam a vida de quem for?

Enganam-se os que pensam que isso vai parar ou que isso é só contra o PT e seus dirigentes. Essa ingenuidade não tem o menor cabimento, quando juízes não se envergonham de falsificar teorias, prender sem provas e dizendo que a falta de provas é motivo para prender.

Pode ser analfabetismo funcional, pode ser ignorância, pode ser miséria intelectual carregada do câncer atávico, residual, da cultura bacharelesca, de colônia escravagista. Há muitas hipóteses que exigem o acompanhamento judicioso do que juízes dizem que usam como fundamento de suas decisões e o que procuradores e promotores usam para fundamentar suas denúncias. Fico pensando se alguém que denega a existência pregressa dos dinossauros ou o legado epistêmico do darwinismo pode saber em que consiste uma relação de causalidade, de inferência e de probabilidade. Custo a crer, mas eu sou só uma doutora em filosofia, que se graduou em direito numa das melhores escolas do país, caracterizada, exatamente, por nos prevenir das metástases antilegalistas. Quanto a isso, sou grata.

Descrever algo é uma das coisas mais difíceis e também requer compromissos semânticos explícitos. Quando eu digo: “a teoria do domínio do fato é o modo de fritar ovos”, estou dizendo que essa teoria, não uma outra, é o modo, não nenhum outro, de fritar ovos.

Se esse não é o modo de fritar ovos, incorro em falsidade, isto é, enuncio algo falso, mesmo que possa fazer tanto sentido como um ou o modo x de fritar ovos.

Mas uma criança em idade escolar, antes da reforma do ensino médio imposta pelo subletrado da força de usurpação do MEC, pode distinguir sem problema algum entre “o modo de fritar ovos” e “o modo como se deve fritar ovos”. Uma criança saberá que essas frases e seus enunciados não são idênticos e que, portanto, identificá-las é errado.

De que natureza é esse erro? Um das coisas mais graves, além do fato melancólico e estarrecedor de que juízes podem mandar enjaular pessoas com base em falsificações feitas por eles mesmos, ou que podem autorizar um outro juiz a fazê-lo, com base em outras falsificações, feitas e cometidas em publicações sem filtro intelectual minimamente alfabetizado, é que esses servidores públicos recebem salários elevados sem que, para tanto, seja requerido mais do que a graduação em direito e, podemos inferir muito tranquilamente, concursos públicos com baixa exigência intelectual e cultural.

Eles não dão aulas em dois ou três expedientes, após doutorado e mestrado, recebendo bolsas simbólicas que mal compram livros e pagam passagens de ônibus. Eles não são obrigados a ler e escrever em mais de um idioma. Não são julgados por pares e pelos que dependem de seu trabalho, para se formarem. Eles não respondem a ninguém e vivem num estado orçamentário e burocrático cujo nível de accountability é irredutivelmente separado do que se passa na vida fiscal, orçamentária e institucional, do país.

Proposições falsas podem fazer sentido, mas não ciência. Proposições falsas e verdadeiras não podem e não devem ser transportadas, sem filtros como os das prerrogativas fundacionais do estado de direito e dos direitos fundamentais, para o âmbito judicial. Proposições falsas não podem é mandar ninguém preso e nem fundamentar o enjaulamento de pessoas. E aí o problema lógico ganha um contorno mais grave: ele serve ao delito, ao crime, ao arbítrio.

Agora respondam: por que um juiz brasileiro não pode enviar alguém para a cadeia ou autorizar a delinquência de um par, com base na receita de ovo frito?

Espero em breve ter isso mais organizado (estudo o Roxin, no momento, e espero publicar este texto, se ele ficar mais bem trabalhado). Uma das vantagens de ter perdido tantas coisas e de viver o direito como algo nada trivial, é poder, sem medo de punição além das que já recebi e receberei, chamar atenção para isto: o golpe em curso, no Brasil, não é parlamentar. E quem pensa em termos democráticos e defende a democracia precisa voltar os olhos e a inteligência para esses setores de opacidade, predação e violação de direitos, que contaminam e inviabilizam a economia, a vida institucional e as relações de representação, no país.

 

Diario do Centro do Mundo

Disqus Comments Loading...
Share
Published by
Diario do Centro do Mundo

Recent Posts

Os estudantes presos e os farsantes de uma democracia disfuncional. Por Moisés Mendes

Joe Biden é o mais republicano dos democratas. As circunstâncias o levaram a ficar diante…

6 horas ago

Consumidor paga mil vezes menos por joia de ouro com diamantes de marca de luxo

Rogelio Villarreal, um cirurgião residente no estado de Tamaulipas, no México, ficou surpreso ao deparar-se…

6 horas ago

De origem judia, candidata à presidência dos EUA é presa em ato pró-Palestina

Jill Stein, candidata nas eleições presidenciais do EUA pelo Partido Verde, foi detida no último…

7 horas ago

Casas Bahia renegocia dívida com bancos e CEO comemora: “Bastante satisfeitos”

O grupo Casas Bahia anunciou ao público neste domingo (28) a conclusão de um acordo…

7 horas ago

Atos pró-Palestina em universidades dos EUA levam mais de 200 à prisão

  Mais de 200 manifestantes foram detidos no sábado (27), nas universidades Northeastern, Arizona, Indiana…

8 horas ago

Brasil espera taxação de super-rico enquanto Congresso vive farra do lobby. Por Sakamoto

Por Leonardo Sakamoto É boa notícia que a proposta do governo Lula de regulamentação da primeira etapa…

9 horas ago