É isso mesmo: é “nós contra eles”

Atualizado em 1 de julho de 2025 às 12:28
O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e seu antecessor, Arthur Lira (PP-AL). Foto: Gabriela Biló/Folhapress

Nas últimas legislaturas, a escolha do presidente da Câmara, no Brasil, não tem sido exatamente um exercício democrático. Tem sido, antes de tudo, um rodízio no comando de um negócio sujo — muito sujo — e altamente lucrativo.

Sai Arthur Lira, entra Hugo Motta. Antes deles, Eduardo Cunha. A linha de sucessão é nítida: um gângster forma o outro e passa-lhe o bastão da rapinagem. Motta foi criado em cativeiro por Cunha. Foi adestrado, moldado, lapidado para manter a engrenagem da impunidade funcionando com precisão. E funcionando muito bem, sobretudo para quem jamais pagou impostos. Nem pretende.

A sucessão gangsteriana garante a eles a sobrevida pelo exercício contínuo da impunidade. Hoje, mesmo sem cargo, Eduardo Cunha, operador do golpe de 2016, desfila livremente pelos corredores do Congresso como uma celebridade da delinquência institucional: a prova viva de que, no Brasil, para defender os endinheirados, o crime compensa.

Já foi condenado, cassado, denunciado. Mas lá está, lépido, oferecendo conselhos a quem quiser aprender como delinquir com elegância, e sair ileso. É um farol. Uma luz negra que guia os caminhos do centrão e do bolsonarismo. Pelo que consta, Lira, mesmo atolado em denúncias, continua sendo o crupiê da jogatina parlamentar.

Desde o golpe que alçou Michel Temer à presidência, o Congresso deixou de ser uma arena política para se tornar filial do sistema financeiro. A pauta é ditada por banqueiros, fundos de investimento, rentistas e, agora também, pelos donos das casas de apostas.

O voto virou ativo. O deputado, passivo. Não é metáfora: o capital financeiro investe em campanhas e, como não há almoço grátis, exige retorno. Lucro, aliás, é o que move cada vírgula aprovada sob a maravilha arquitetônica de Niemeyer.

Não por acaso, quando se discutiu a taxação dos BBB — Bancos, Bilionários e Bets — o Congresso respondeu com um “não” silenciosamente retumbante. Um “não” obediente, prestativo, quase submisso. Um “não” calado, sem explicações. Apenas “não”. E o eleitor que aguente.

Afinal, o Brasil tem um dos povos mais tributados e uma das elites mais isentas do planeta. E isso, curiosamente, não constrange nossos rentistas; mesmo num mundo em que há bilionários clamando por tributação de suas próprias fortunas.

Para garantir o resultado da votação, realizada nas altas horas da noite, enquanto o trabalhador dormia para enfrentar o dia seguinte, os jornalões e as emissoras de TV fizeram o que sempre fazem: durante uma semana inteira, manchetes e colunistas bradaram contra a “insegurança jurídica” de tributar os ricos.

A tal “punição ao mérito” foi elevada à condição de tragédia nacional. Nas redes, a milícia digital de perfis falsos contratados despejou memes ridículos sobre o “perigo comunista” de cobrar imposto de quem lucra bilhões sem dar nada em troca.

O presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), e o presidente Lula. Foto: Brenno Carvalho/Agência O Globo

Tudo parecia alinhado para mais uma encenação do velho teatro neoliberal. Mas, desta vez, algo saiu do script. O governo — Lula, Haddad e companhia — rompeu o silêncio e foi à luta. Explicou, confrontou, desmascarou. E o caldo entornou. A opinião pública, geralmente tratada como distraída, percebeu o truque. E foi o bastante para disparar o alarme entre os donos do poder.

A reação veio pelas mãos sedosamente hidratadas de João Doria. O lobista do atraso convocou uma reunião de emergência com “empresários” — leia-se, financistas de punho rendado, especialistas em viver do suor e do sangue dos outros — para exibir apoio a Hugo Motta e animar os deputados a seguirem firmes em sua disposição de usar o Legislativo para institucionalizar, com toda a liturgia legal, o assalto ao orçamento público.

Era preciso garantir que o plano de continuidade não escorregasse na lama da opinião popular. Acalmar o mercado. Manter o Congresso na coleira. E deixar claro, para o cidadão comum, quem é que manda ali dentro.

Para mim, esse convescote apressado é, ao que tudo indica, um sinal de fraqueza. Eles sentiram o golpe. Estão frágeis. Tenho para mim que, pela primeira vez em muito tempo, o capital hesita. Pela primeira vez, os ventríloquos do poder temem que o público resolva ouvir sua própria voz.

Ontem, a mídia deu palco para Hugo Motta anunciar um rompimento com Haddad, acusando o governo de estimular o discurso do “nós contra eles”. Pois que seja! É isso mesmo. De um lado, o povo que paga impostos e mal usufrui dos serviços públicos; de outro, uma elite rapinante que se apropria da parte mais robusta do orçamento nacional.

Que bom que o governo foi direto ao ponto. Que ótimo que Motta acusou o golpe — e partiu para a chantagem aberta.

É agora. Hora de irmos às ruas. De lembrar que, desde 1889, quando a República foi proclamada para livrar a elite agrária dos impostos imperiais, os ricos deste país vivem sob um regime de exceção fiscal. O tempo passou. A lógica ficou. Até hoje, o Brasil segue sendo um dos raros lugares onde um bilionário paga, proporcionalmente, menos imposto que o camelô da esquina.

Essa escolha não é apenas econômica. É moral. Ou seguimos aceitando que o país seja governado por prepostos do capital, ou retomamos as rédeas da democracia. Hugo Motta não é novidade. É apenas o novo gerente da velha rapinagem. Mas eles não são eternos.

Eles têm o dinheiro. Nós somos o número. Se ousarmos, podemos derrotá-los.