
Nas últimas legislaturas, a escolha do presidente da Câmara, no Brasil, não tem sido exatamente um exercício democrático. Tem sido, antes de tudo, um rodízio no comando de um negócio sujo — muito sujo — e altamente lucrativo.
Sai Arthur Lira, entra Hugo Motta. Antes deles, Eduardo Cunha. A linha de sucessão é nítida: um gângster forma o outro e passa-lhe o bastão da rapinagem. Motta foi criado em cativeiro por Cunha. Foi adestrado, moldado, lapidado para manter a engrenagem da impunidade funcionando com precisão. E funcionando muito bem, sobretudo para quem jamais pagou impostos. Nem pretende.
A sucessão gangsteriana garante a eles a sobrevida pelo exercício contínuo da impunidade. Hoje, mesmo sem cargo, Eduardo Cunha, operador do golpe de 2016, desfila livremente pelos corredores do Congresso como uma celebridade da delinquência institucional: a prova viva de que, no Brasil, para defender os endinheirados, o crime compensa.
Já foi condenado, cassado, denunciado. Mas lá está, lépido, oferecendo conselhos a quem quiser aprender como delinquir com elegância, e sair ileso. É um farol. Uma luz negra que guia os caminhos do centrão e do bolsonarismo. Pelo que consta, Lira, mesmo atolado em denúncias, continua sendo o crupiê da jogatina parlamentar.
Desde o golpe que alçou Michel Temer à presidência, o Congresso deixou de ser uma arena política para se tornar filial do sistema financeiro. A pauta é ditada por banqueiros, fundos de investimento, rentistas e, agora também, pelos donos das casas de apostas.
O voto virou ativo. O deputado, passivo. Não é metáfora: o capital financeiro investe em campanhas e, como não há almoço grátis, exige retorno. Lucro, aliás, é o que move cada vírgula aprovada sob a maravilha arquitetônica de Niemeyer.
Não por acaso, quando se discutiu a taxação dos BBB — Bancos, Bilionários e Bets — o Congresso respondeu com um “não” silenciosamente retumbante. Um “não” obediente, prestativo, quase submisso. Um “não” calado, sem explicações. Apenas “não”. E o eleitor que aguente.
Afinal, o Brasil tem um dos povos mais tributados e uma das elites mais isentas do planeta. E isso, curiosamente, não constrange nossos rentistas; mesmo num mundo em que há bilionários clamando por tributação de suas próprias fortunas.
Para garantir o resultado da votação, realizada nas altas horas da noite, enquanto o trabalhador dormia para enfrentar o dia seguinte, os jornalões e as emissoras de TV fizeram o que sempre fazem: durante uma semana inteira, manchetes e colunistas bradaram contra a “insegurança jurídica” de tributar os ricos.
A tal “punição ao mérito” foi elevada à condição de tragédia nacional. Nas redes, a milícia digital de perfis falsos contratados despejou memes ridículos sobre o “perigo comunista” de cobrar imposto de quem lucra bilhões sem dar nada em troca.

Tudo parecia alinhado para mais uma encenação do velho teatro neoliberal. Mas, desta vez, algo saiu do script. O governo — Lula, Haddad e companhia — rompeu o silêncio e foi à luta. Explicou, confrontou, desmascarou. E o caldo entornou. A opinião pública, geralmente tratada como distraída, percebeu o truque. E foi o bastante para disparar o alarme entre os donos do poder.
A reação veio pelas mãos sedosamente hidratadas de João Doria. O lobista do atraso convocou uma reunião de emergência com “empresários” — leia-se, financistas de punho rendado, especialistas em viver do suor e do sangue dos outros — para exibir apoio a Hugo Motta e animar os deputados a seguirem firmes em sua disposição de usar o Legislativo para institucionalizar, com toda a liturgia legal, o assalto ao orçamento público.
Era preciso garantir que o plano de continuidade não escorregasse na lama da opinião popular. Acalmar o mercado. Manter o Congresso na coleira. E deixar claro, para o cidadão comum, quem é que manda ali dentro.
Para mim, esse convescote apressado é, ao que tudo indica, um sinal de fraqueza. Eles sentiram o golpe. Estão frágeis. Tenho para mim que, pela primeira vez em muito tempo, o capital hesita. Pela primeira vez, os ventríloquos do poder temem que o público resolva ouvir sua própria voz.
Ontem, a mídia deu palco para Hugo Motta anunciar um rompimento com Haddad, acusando o governo de estimular o discurso do “nós contra eles”. Pois que seja! É isso mesmo. De um lado, o povo que paga impostos e mal usufrui dos serviços públicos; de outro, uma elite rapinante que se apropria da parte mais robusta do orçamento nacional.
Que bom que o governo foi direto ao ponto. Que ótimo que Motta acusou o golpe — e partiu para a chantagem aberta.
É agora. Hora de irmos às ruas. De lembrar que, desde 1889, quando a República foi proclamada para livrar a elite agrária dos impostos imperiais, os ricos deste país vivem sob um regime de exceção fiscal. O tempo passou. A lógica ficou. Até hoje, o Brasil segue sendo um dos raros lugares onde um bilionário paga, proporcionalmente, menos imposto que o camelô da esquina.
Essa escolha não é apenas econômica. É moral. Ou seguimos aceitando que o país seja governado por prepostos do capital, ou retomamos as rédeas da democracia. Hugo Motta não é novidade. É apenas o novo gerente da velha rapinagem. Mas eles não são eternos.
Eles têm o dinheiro. Nós somos o número. Se ousarmos, podemos derrotá-los.