É preciso falar sobre o suicídio nas escolas. Por Luanda Julião

Atualizado em 12 de maio de 2018 às 18:05

Publicado no Justificando

POR LUANDA JULIÃO, doutoranda em Filosofia na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar)

São quase duas da manhã, madrugada de domingo para segunda-feira, começo do mês de abril. Sem sono, eu penso em inúmeras coisas enquanto rolo de um lado para outro na cama. Vencida pela insônia, eu pego o celular para me distrair. Menos de um minuto depois, um número não registrado, que com certeza vira que eu estava online, me chama:

– Professora, eu não sei por onde começar.

Num lapso, eu rapidamente penso: “Não acredito que um aluno vem falar de trabalho a essa hora. Maldita hora em que eu fui compartilhar meu WhatsApp nas salas de aula”.

Decido não responder a mensagem e me desconectar, mas meu interlocutor é mais ágil. No mesmo instante em que eu tomara a decisão de desligar o celular, uma outra mensagem chega.

– Eu sei que não é hora, mas eu não tenho ninguém para falar. Me desculpe incomodá-la.

– Seu trabalho é para amanhã? – eu pergunto secamente, na tentativa de encerrar o mais breve a conversa.

A essa altura do diálogo, eu já havia reconhecido pela foto do perfil que quem me procurava àquela hora era uma aluna do ensino médio. Para preservar sua identidade, vamos chamá-la de Mel.

Mel respondeu:

– Essa noite é a segunda vez que eu tento suicídio.

Penso no peso e na responsabilidade que a conversa adquire e confesso que por alguns segundos não sei o que responder, nem como agir. Apenas consigo pensar que naquele momento dizer “não faça isso!” não ressoaria em lugar algum.

Começo a digitar alguma coisa, alguma frase de efeito, não me lembro, quando chega outra mensagem da Mel:

–  Tento lutar, mas parece impossível. É horrível. Não aguento mais!

Ela então desabafa comigo e imediatamente eu percebo a gravidade da situação.

Uma garota de dezesseis anos, negra, pobre, aluna de escola pública, vítima de violência sexual e racismo, deprimida, desamparada e confusa não quer mais viver. Tudo o que ela pensa é que dando fim à sua vida, todos os seus problemas desaparecerão. 

Passei a madrugada conversando com a Mel, ouvindo-a e fazendo com que me ouvisse. No dia seguinte, ela procurou ajuda psicológica e psiquiátrica na rede pública e até onde pude acompanhar, sua depressão é crônica e os remédios demoram a fazer efeito, o que, segundo ela mesma, causa “altos e baixos”, ou seja, momentos de euforia e tristeza profunda. A família diz que ela está sendo tratada e acompanhada.

Dia 24 de abril. Os principais jornais do país, como O Globo e O Estado de S. Paulo, noticiam que dois alunos do ensino médio do Colégio Bandeirantes, um dos mais tradicionais e conceituados de São Paulo – como fazem questão de frisar nas chamadas das matérias – suicidaram-se em casa em um intervalo de pouco mais de dez dias. A mesma matéria no jornal O Estado afirma que houve um caso no mesmo mês no Colégio Agostiniano e, no ano passado, um caso no Colégio Vértice. Os pais, preocupadíssimos, insistem que as escolas particulares debatam o assunto entre os alunos.

Leio a matéria e penso na Mel e em todos os meus alunos (todos eles de escolas públicas) que já se automutilaram, que tentaram suicídio e/ou têm depressão. Penso também nas estatísticas expostas na matéria, que afirmam que suicídio é a segunda causa de morte de jovens e adolescentes no mundo. Segundo a notícia fornecida pelo jornal, que se baseia nos dados mais recentes fornecidos pelo Ministério da Saúde, os casos de suicídios no Brasil têm crescido nos últimos anos: foram 722 mortes em 2015, na faixa etária de 15 a 19 anos. A segunda causa de morte de jovens e adolescentes é o maior tabu das escolas, que evitam falar sobre o tema com receio, inclusive, de incentivá-lo.

Segundo as reportagens, por pressão dos pais, as escolas particulares decidiram refletir sobre o assunto, colocando-o em pauta e ouvindo os alunos.  Mas, e nas escolas públicas, como debater esse assunto?

Se o suicídio ainda é tabu nas escolas particulares e, sem dúvidas, na sociedade de um modo geral, como abordar o tema nas escolas públicas onde salas lotadas e todos os problemas negligenciados pelo poder público ofuscam o espaço para o diálogo?

No ano passado, pela primeira vez, depois de quase uma década de prática docente, eu decidi ceder um tempo (de cinco a dez minutos) durante os últimos minutos da minha aula, para que algum aluno (por livre e espontânea vontade) fosse até a frente da sala (num cantinho que juntos intitulamos de cantinho do desabafo) e compartilhasse com os demais colegas algum problema ou algo bom que estivesse acontecendo naquele momento na vida dele.

De início, pensei que eles hesitariam em falar. Então coloquei em pauta: Por que os jovens relutam em falar sobre os próprios problemas? A escola deveria ser o lugar mais democrático do mundo, mas infelizmente, é o local onde nos deparamos pela primeira vez com as diferenças de maneira hostil e excludente. Diz ser inclusiva, mas pratica uma inclusão seletiva – na maioria das vezes prolifera a exclusão que há na sociedade.

Diante da resistência, eu mesma então decidi estrear o espaço, contando um pouco da minha vida, dos meus problemas pessoais e, mais especificamente, como foi a minha adolescência como uma garota negra, pobre e estudante de escola pública. Na época, eu havia acabado de me separar, passava por problemas financeiros e sofria com a ausência do meu pai. Mostrei a eles que eu tinha tantos problemas quanto eles.

O fato é que o “cantinho do desabafo”, que a princípio começou como uma maneira dinâmica de terminar as aulas de filosofia, tornou-se algo sério, parte da aula, de modo que os próprios alunos me cobravam a dinâmica já no começo da aula. Esses términos de aula fizeram com que eu percebesse que a maioria dos meus alunos sofrem de depressão e ansiedade.

Muitos deles, durante o desabafo, alegavam já ter tentado se matar uma ou mais vezes. Os motivos? Os mais variados possíveis: violência doméstica, racismo, bullying, separação dos pais, negligência e ausência dos pais ou responsáveis, alcoolismo, drogas, violência sexual, baixa autoestima, falta de aceitação e exclusão social.  

Compartilhando sentimentos não nos sentimos sozinhos, pois constatamos que todos nós somos frágeis, todos nós temos problemas, todos nós nos sentimos sozinhos diante das adversidades da vida.

Albert Camus (1913-1960), conhecido como o filósofo do absurdo, em seu ensaio O Mito de Sísifo, afirmava que “existe apenas um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois”.

Na mitologia, Sísifo foi condenado pelos deuses a empurrar repetidamente uma rocha até o topo de uma montanha para vê-la cair novamente. Para os deuses, não havia castigo pior do que a ação monótona, repetitiva, ilógica, sofrida, absurda. Ao chegar no topo da montanha a rocha despencaria e não haveria nada a fazer.

Assim como Sísifo, fazemos as coisas de forma rotineira e chata, muitas vezes sem entender o porquê das ações e os seus resultados.

No entanto, Camus percebe que é impossível responder à pergunta: “Por que estamos aqui?” ou “Qual o sentido da vida?”. Para este filósofo, devemos deixar de lado essa nossa pretensão de procurar o sentido das coisas, pois ao aceitarmos que a vida não tem sentido ou pararmos de buscar algo que dê sentido a ela, o absurdo da vida, da nossa existência cessa, deixa de ser – em suma, para de nos perturbar. 

Assim, para Camus, é preciso aceitar o absurdo, a falta de razão e lógica da vida para assim vivermos bem, para assim aceitarmos o fato de que podemos viver a vida sem um sentido. Entrementes, a vida ser absurda não significa que as pessoas tenham que sofrer, pois mesmo vivendo num oceano de perguntas sem respostas, não há o porquê de se desistir da vida. Pelo contrário, temos que enfrentá-la com toda a sua incoerência e absurdidade, sem trapaceá-la. Para Camus, aprender essa verdade (o absurdo, a falta de lógica da vida) é aprender a viver. Como ele afirma quase nas páginas finais do seu ensaio: “É preciso imaginar Sísifo feliz”.

Apesar de ser um assunto delicado, o melhor que temos a fazer é falar claramente sobre o suicídio com os nossos jovens e adolescentes. O Japão é um exemplo que demonstra ser o diálogo o melhor caminho. Até 1998, o suicídio era considerado tabu no Japão, de modo que era proibido discuti-lo publicamente. Os japoneses perceberam que não falar sobre o assunto aumentava o número da incidência de casos e mortes. Até que, a partir de 1998, o governo decidiu desenvolver medidas de saúde públicas no país para diminuir o número de suicídios, o que deu certo, pelos indícios de suicídio diminuírem a cada ano.

No Brasil, devemos seguir o mesmo exemplo dos japoneses e debater sobre o assunto em casa, na comunidade, nas escolas. Se a escola é o espaço onde, pela primeira vez na vida, nossos jovens e crianças se deparam com as contradições e frustrações intrínsecas a nossa própria existência, ela é, portanto, recinto em que o diálogo sobre a maneira de lidar com as contradições e frustrações da vida deve ser inserido.