“É preciso rever a Anistia no Brasil”

Atualizado em 10 de maio de 2013 às 11:53

O presidente da Comissão da Verdade de São Paulo, Gilberto Natalini, falou ao Diário que quer encontrar seu torturador, o coronel Ustra.

Natalini
Natalini

De todas as pessoas que desejam ouvir o depoimento do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra à Comissão Nacional da Verdade, marcado para sexta (10) em Brasília, nenhuma está mais tranquila que Gilberto Natalini. “Quero ver se ele se lembra de mim e, claro, fazer umas perguntas para ele”, diz.

Natalini foi torturado por Ustra e seus capangas em 1972, em São Paulo. Ustra comandou o Doi-Codi entre 1970 e 1974, os anos mais duros da repressão. Seu codinome era Doutor Tibiriçá. Natalini contou ao Diário em seu gabinete que apanhou, tomou choques e sofreu surras com vara de cipó.

Ustra o teria obrigado, também, a recitar as poesias que escrevia na prisão – algumas românticas e outras de protesto.

Natalini é médico, vereador pelo PV-SP e presidente da Comissão Municipal da Verdade em São Paulo desde o início do ano. Já esteve com o delegado Cláudio Guerra no Espírito Santo. Guerra, ex-Dops, com mais de cinquenta homicídios nas costas, chegou a ser preso (não por crimes políticos), virou pastor evangélico e afirmou que busca a redenção.

Ustra, hoje com 81 anos, escreveu um livro, A Verdade Sufocada, e jamais admitiu seu envolvimento. A equipe de Natalini ainda tem uma conversa marcada com o fotógrafo que registrou a imagem de Vladimir Herzog “enforcado” em sua cela (como se sabe, o “enforcamento” foi uma armação dos militares – Herzog já estava morto por não resistir à tortura).

O dilema principal da comissão é o destino que se dará aos casos levantados. Por causa da Lei da Anistia, os torturadores não podem pagar pelos crimes cometidos na Ditadura. “É preciso rever a Anistia”, diz Natalini. “Tem de haver um instrumento jurídico que faça que os torturadores sejam julgados e, se for o caso, punidos. É óbvio que não defendo que se faça com eles o mesmo que fizeram conosco: eliminar, torturar…  Mas eles têm de pagar”.

“A Anistia foi um grande acomodação no Brasil. Supostamente, uma reconciliação. Como vou me reconciliar com uma pessoa que me espancou covardemente?”

Ustra já havia sido convidado por Natalini a falar, mas recusou. No caso da Comissão Nacional, como se trata de uma convocação, Ustra não tem como fugir legalmente (foi Natalini quem pressionou para que o coronel fosse chamado a Brasília). Mesmo presente, porém, seu advogado já obteve um habeas corpus que o desobriga de emitir palavra.

Natalini tinha 19 anos quando foi detido. Estudava na Escola Paulista de Medicina. Foi acusado de ter exemplares do jornal do Molipo (Movimento de Libertação Popular) em sua casa. Diz que não militou na luta armada. “O jogo da tortura é complexo. É feito para destruir o inimigo. Numa briga, você pode apanhar, se defender ou fugir. Vi coisas inomináveis. O ‘Vieira’ foi deixado 24 horas de cabeça para baixo, pendurado no umbral de uma porta. Cada militar que passava por ele lhe dava um cascudo. Quando o puseram em pé, teve um AVC. Nunca se recuperou.”

Ustra
Ustra

Durante os três meses em que ficou preso, seu pai conseguiu visita-lo uma vez. Deu-lhe uma bronca por sujar o nome da família. Natalini lhe mostrou, então, as feridas nos braços. O pai o abraçou e os dois tiveram de ser apartados. “Ele era de direita. Virou esquerdista na hora”.

Os soldados que dizem que “cumpriam ordens” não merecem compaixão. “Eram todos depravados, doentes, sádicos. Um tal de ‘Esporrinha’ ejaculava quando via gente sendo maltratada. Outro, chamado ‘Padre’, acendia velas enquanto batiam. Não vou esquecer os gritos que ouvi”.

Natalini encontrou um desses homens cinco anos depois, quando fazia residência no Hospital do Servidor Público. Era um policial civil. Apareceu de muleta, com uma lesão no pé. “Eu cuidei dele, dei uma injeção com todo jeito. O rapaz andava todo torto por causa de um tiro nas costas. Terminei o atendimento e perguntei: ‘você se lembra de mim?’ Ele parou, me olhou – e saiu correndo, com o pé engessado’”.

Ao menos dois projetos devem ser encaminhados ao prefeito pela Comissão Municipal: reaver os mandatos de 21 políticos cassados desde 1947; e a construção de um memorial para os desaparecidos. Em julho, um livro deve ser lançado.

“Temos de mostrar ao povo brasileiro o que aconteceu naquele período, sem subterfúgios”, diz Natalini, que afirma ter recebido uma indenização do estado de 22 mil reais, em duas vezes. “A Anistia foi um acochambramento e o Ustra é o grande paradigma disso tudo”.

Se conseguir falar com Ustra, ele está com as questões na ponta da língua – perguntas que levaram 41 anos para ser feitas. Além disso, ele tem outro plano. “Estou pensando em recitar alguns poemas para ele”.

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