
O presidente da ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial), Ricardo Capelli, ex-ministro-chefe interino do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República e interventor federal nos atos golpistas de 8 de janeiro, concedeu entrevista ao DCM sobre a recente operação policial nos Complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro.
Capelli abordou os principais desafios da segurança pública no país. “É preciso ter como meta libertar a população brasileira que vive sob o jugo do crime organizado”, diz.
A OPERAÇÃO CONTENÇÃO
Não é possível comemorar 121 pessoas mortas, incluindo quatro trabalhadores das forças de segurança que tombaram em serviço. Ao mesmo tempo em que é preciso registrar isso, também é necessário reconhecer que é insuportável a situação para os 28 milhões de brasileiros que moram em territórios dominados pelo crime organizado – tráfico e milícia – e que vivem sob um Estado de Direito paralelo, com leis e tribunais próprios, atrás de barricadas, com homens portando fuzis, metralhadoras, granadas e drones, circulando pelas ruas, diante de suas casas, convivendo com suas famílias e suas crianças.
Segurança pública precisa ser conduzida com inteligência, planejamento e uso proporcional da força. No entanto, não é possível olhar para esses territórios dominados e considerar que está tudo bem. O controle sobre o território nacional cabe ao Estado brasileiro, e o monopólio do uso da força também. Logo, não é razoável que parcelas desse território sejam dominadas por criminosos que circulam com armas de guerra nas ruas. O Estado não pode, de forma alguma, admitir isso.
AS DECLARAÇÕES DE CLÁUDIO CASTRO
Sinceramente, o governador Cláudio Castro dizer que essa operação é “vanguarda”, por favor — não há nada de vanguarda nisso. Mas, claro, a ação vai gerar outras operações em estados cujos governadores vieram em apoio a Castro. Se o campo democrático não enfrentar essa prioridade com coragem, planejamento e ações concretas, a extrema-direita ocupará esse espaço.
DE ONDE VÊM AS ARMAS DO TRÁFICO?
Tráfico de drogas existe em boa parte do mundo; o que não existe é o domínio de território por facções fortemente armadas. Acabar com o tráfico é muito difícil, mas o domínio territorial é inaceitável. O armamento pesado do crime tem variadas origens: uma parcela é desviada das forças de segurança; outra parte, talvez a maior, entra pelas fronteiras. Há uma série histórica de importação de armas legais vindas de empresas do Paraguai, desviadas na fronteira em volume absurdo. O próprio governo paraguaio chegou a reconhecer, em um ano, o desaparecimento de aproximadamente 17 mil fuzis e pistolas.
Sumiram para onde? Foram parar no Brasil, por meio do contrabando. Outra fonte que merece investigação profunda é a dos CACs. Hoje o Brasil tem mais de 800 mil pessoas registradas como CACs, enquanto o Exército possui 226 mil homens. E triplicou o número de registros de roubos e furtos de armas nos últimos anos: hoje, cerca de 180 pessoas por mês vão às delegacias registrar boletins de ocorrência alegando que tiveram suas armas furtadas ou roubadas. Será que foram roubadas mesmo, ou será que esses registros servem para “esquentar” o desvio e a venda ilegal de armas ao crime organizado?
NARCOMILÍCIA
Hoje é difícil separar tráfico e milícia. No Rio de Janeiro já se usa o termo “narcomilícia”, porque essas organizações criminosas não distinguem muito o tipo de atividade com que atuam. Elas exploram qualquer ramo que gere lucro: domínio territorial, mercado imobiliário (grilagem de terras e construção ilegal), máfia do combustível, tráfico de cocaína, armas e outros segmentos da economia.
Em 2023, quando eu estava no Ministério da Justiça com o ministro Flávio Dino, em uma única operação, a Polícia Federal apreendeu 136 imóveis de organizações criminosas, incluindo uma torre inteira de apartamentos de luxo de frente para o mar em Balneário Camboriú.
A Operação Carbono Oculto demonstrou isso: o dinheiro do crime organizado circulando dentro do sistema financeiro. As duas principais organizações criminosas no Brasil são transnacionais, operam em mais de 30 países e movimentam cifras bilionárias. Essas quantias não circulam em malas, mas sim dentro do sistema financeiro nacional, o que exige uma ampla organização do Estado, pois o crime organizado ameaça a vida, a economia e, sobretudo, o Estado Democrático de Direito.
NARCOTERRORISMO E INTERVENÇÃO DOS EUA
Segurança pública é coisa séria e não pode ser tratada com oportunismo ou manobras políticas e eleitorais. A soberania sobre o território nacional é do Brasil; não cabe qualquer tipo de interferência estrangeira em assuntos internos. O que cabe — e é normal e desejável — é a cooperação internacional entre forças de segurança e polícias para o enfrentamento das organizações criminosas transnacionais. Não à toa, hoje a Polícia Federal ocupa posição de destaque na Interpol. Cooperação internacional é importante e bem-vinda; interferência em território nacional, não.
Acho, com todo respeito, que o governador Cláudio Castro precisa refletir sobre o fiasco da articulação de Eduardo Bolsonaro com Donald Trump — Eduardo se desmoralizou ao expor e prejudicar o país. Castro deveria aprender com isso. Questões do Brasil precisam ser tratadas internamente. O rumo deve ser aprovar a PEC da Segurança e o projeto de lei que aperta o cerco às organizações criminosas. Cláudio Castro precisa trabalhar na integração da segurança pública — o Rio de Janeiro é o único estado do país que tem três secretários de segurança: um para a PM, um para a Polícia Civil e um para a segurança geral. Ou seja, Castro não consegue organizar e integrar a própria segurança pública, mas quer fazer politicagem com Trump. Que faça, antes, o dever de casa.
O PAPEL DA POLÍCIA FEDERAL E A OPERAÇÃO CARBONO OCULTO
É sempre importante, quando se fala em integração, garantir a troca de informações — algo que nunca é simples em operações policiais, por causa do sigilo. A Polícia Federal não é uma polícia ostensiva, e sim investigativa, e tem feito um bom trabalho nesse sentido. Um exemplo é a já citada Operação Carbono Oculto.
A atuação sistêmica e estratégica da PF dentro do sistema financeiro é fundamental, assim como a retomada de territórios dominados pelo crime organizado. É preciso somar essas iniciativas.
Na operação do Rio de Janeiro, o governo estadual ainda precisa responder a algumas questões, como: permanecerá dentro do território para restaurar o controle do Estado? Se o Estado se retirar, o crime organizado voltará a dominar — ou outras facções tomarão o lugar?
POLÍCIA PACIFICADORA – O MODELO QUE DEU CERTO E FOI ABANDONADO
O modelo mais adequado no Rio de Janeiro, ao que parece, ainda é o das UPPs, comandado pelo delegado José Mariano Beltrame, que conseguiu, com as Unidades de Polícia Pacificadora, retomar a presença do Estado nos territórios. É preciso oferecer alternativas à juventude — parte dela cooptada pelo crime por falta de oportunidades —, investir em projetos urbanísticos que garantam dignidade às famílias e promover políticas públicas e qualificação profissional. Não adianta apenas realizar operações de confronto: é preciso permanecer. A pergunta que segue no ar é: qual é o plano do governo Cláudio Castro para garantir paz e segurança às comunidades do Complexo da Penha e do Alemão?
O problema das UPPs foi a politização: viraram moeda eleitoral e acabaram sendo expandidas sem planejamento e coordenação. Depois se desintegraram, no contexto do escândalo que envolveu o então governador Sérgio Cabral.
O modelo de Medellín, na Colômbia, também é um exemplo válido — mas lá, no início, houve um forte enfrentamento às facções. Só depois o Estado dominou o território e permaneceu.
PEC DA SEGURANÇA
Espero que o Congresso Nacional aprove a PEC da Segurança e apoie o PL que aperta o cerco às facções. Essa é uma questão de Estado, não de partido. O crime não é de esquerda nem de direita, e o debate precisa de bom senso. É preciso equilíbrio e firmeza para tratar desse tema.
SEGURANÇA PÚBLICA É O TEMA FRÁGIL DA ESQUERDA?
Esse é um debate que exige equilíbrio. Parte da extrema-direita e da direita acredita que a solução para a segurança pública é “matar todo mundo”, enquanto uma parcela da esquerda acha que é possível enfrentar o crime organizado sem o uso da força — o que é absolutamente impossível. Outra parte acredita que o problema é a polícia — e não é. A polícia é parte da solução.
Há, sim, problemas de abuso de violência dentro das corporações, que precisam ser enfrentados e reduzidos.
Mas é um mito que isso seja o principal problema da segurança pública no Brasil: o principal problema é o crime organizado. Precisamos de uma polícia técnica, equipada e preparada, com bons servidores, mas que, se for recebida a tiros de fuzil nas comunidades, tenha o direito de responder proporcionalmente — pois atrás da farda há pais e mães de família que saem para trabalhar. Planejamento, inteligência e força — no equilíbrio do debate.
A PRINCIPAL PREOCUPAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
Segurança pública é uma questão central no Brasil. Todas as pesquisas apontam que é a principal preocupação da sociedade, e é preciso enfrentá-la com prioridade, em sintonia com o que pensa a população.
Dou alguns exemplos: temos 13 mil homens e mulheres na Polícia Federal para cuidar de 26 mil quilômetros de fronteira. Isso é suficiente? Se não for, que esforço precisa ser feito para equipar e ampliar esse efetivo — inclusive nos portos — para conter o crime organizado? Isso só será possível com ampla mobilização nacional.
É preciso ter como meta libertar a população brasileira que vive sob o jugo do crime organizado.