E se um presidente muçulmano fosse eleito na França? Por Luísa Gadelha

Atualizado em 30 de novembro de 2015 às 16:52
A capa do Charlie Hebdo na semana do ataque ao jornal tratava do livro Submissão
A capa do Charlie Hebdo na semana do ataque ao jornal tratava do autor de Submissão

“A mediocridade da “oferta política” era até surpreendente. Um candidato de centro-esquerda era eleito, por um ou dois mandatos, dependendo de seu carisma individual, e razões obscuras o impediam de cumprir um terceiro; depois, a população se cansava desse candidato, e de modo geral do partido de centro-esquerda. Observava-se então um fenômeno de alternância democrática, e os eleitores levavam ao poder um candidato de centro-direita, também por um ou dois mandatos, dependendo de sua própria natureza. Curiosamente, os países ocidentais tinham imenso orgulho desse sistema eleitoral que, no entanto, não passava da divisão do poder entre duas gangues rivais, e às vezes chegavam até a desencadear guerras a fim de impô-lo aos países que não compartilhavam de seu entusiasmo.”

Assim Michel Houellebecq descreve a democracia ocidental em seu romance Submissão. Até que, em 2017, após uma rápida progressão da extrema direita, o islamismo flerta com a política, criando o Partido dos Muçulmanos da França. Devido a seu antissemitismo radical e à aproximação com a extrema direita, o partido é logo abortado e dá lugar à Fraternidade Muçulmana, criada pelo carismático Mohammed Ben Abbes. De postura moderada, a Fraternidade Muçulmana apoia de maneira sutil a causa palestina e tem boas relações com as autoridades judaicas. Em 2022, apenas cinco anos após a criação da Fraternidade Muçulmana e com o apoio do Partido Socialista, Mohammed Abbes é eleito presidente da França. Uma situação “inédita e angustiante”, nas palavras de um dos personagens.

Submissão foi publicado na França na mesma semana em que ocorreram os ataques ao Charlie Hebdo. Ironicamente, o romance estava na capa do periódico naquele fatídico 07 de janeiro de 2015. O momento não poderia ser mais propício: o que era pra ser uma distopia, o romance, que foi comparado a 1984, de Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Huxley, acabou se aproximando mais de nossa realidade e do conflito entre a Europa e o Islã. Submissão foi um sucesso de vendas, tendo vendido mais de 120 mil exemplares em apenas cinco dias. “O livro mais polêmico do ano”, como qualifica a Alfaguara, responsável pela edição brasileira.

Para o protagonista François, um professor decadente, solitário e misógino da Sorbonne, a mudança política não parece fazer muita diferença. François, ironicamente, estudou em seu doutorado um escritor francês do final do século XIX, J. K. Huysmans, cuja obra trata do seu processo de conversão ao catolicismo, após uma vida libertina. O paralelo feito entre Huysmans, escritor decadente pouco conhecido, e François, é interessante e digno de ser observado. François tem opiniões um tanto quanto escandalosas: o patriarcado e a religião são necessários para a manutenção e reprodução da sociedade; o laicismo, o individualismo e o emponderamento feminino fazem cair as taxas de natalidade e desorganizam nossa estrutura sócio-econômica. Assim, ele explica o aumento da população muçulmana na França e na Europa de maneira geral.

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As ideias de François, bem como de outros personagens do romance, se confundem com as ideias do próprio autor, que tem sido acusado de racismo e xenofobia. Houellebecq já era um escritor consagrado na França, tendo ganhado o prêmio Goncourt em 2010 pelo seu romance O Mapa e o Território. Em uma entrevista para a revista Lire, em 2001, Houellebecq declarou que “o islamismo é uma religião perigosa”. Após a publicação de Submissão, ao ser perguntado se se considerava islamofóbico, Houellebecq disse que sim, se considerarmos a palavra fobia ao pé da letra, isto é, ele tem medo de que as coisas deem errado caso um regime islâmico entre em vigor.

Curiosa e ironicamente, o romance não parece criticar o islã; pelo contrário: após a ascensão da Fraternidade Muçulmana, o indiferente François se depara com uma transição tranquila e suave, salvo alguns conflitos civis isolados.

A Fraternidade Muçulmana não difere muito do que o Partido Socialista teria feito nos âmbitos da economia e da segurança; quanto à educação, a mesma é um ponto chave, pois a Fraternidade Muçulmana pretende instaurar o ensino islâmico, isto é, um ensino não misto, no qual todos os professores são muçulmanos e as mulheres só concluem o ensino básico, estudando até determinada idade. O currículo seria adaptado ao Alcorão e os horários de preces, respeitados. Ben Abbes ambiciona, ainda, unir a União Europeia aos países do entorno Mediterrâneo (Marrocos, Tunísia, Argélia e Egito), tornando-se o primeiro presidente deste que seria um grande domínio, nos moldes do Império Romano.

De fato, a paz a calmaria reinam: a delinquência, sobretudo nos bairros de imigrantes, diminui, e as taxas de desemprego caem velozmente, provavelmente devido à saída das mulheres do mercado do trabalho. Com a ajuda das “petromonarquias”, que injetam dinheiro na França, a economia vai de vento em popa.

O próprio Houellebecq, em entrevista recente ao Globo News (http://www.conjur.com.br/2015-jun-05/michel-houellebecq-ocidente-vive-vazio-nao-sabe-falta), classifica o romance de otimista, o que contradiz o seu medo. Entretanto, apesar do romance nos trazer à tona uma reflexão extremamente atual sobre o choque de civilizações e religiões, Houellebecq declara, na mesma entrevista, sua postura apolítica. O autor parece ter orgulho de afirmar seu desconhecimento sobre as colônias francesas. Ao ser perguntado sobre o papel do Islã na história colonial francesa, responde: “Na verdade, quero dizer, nunca pensei muito nisso. Na verdade nunca tinha pensado nisso na vida. E não penso nisso quase nunca”.

Daí as acusações de racismo e islamofobia contra o autor que, à semelhança do seu protagonista François, parece passar alheio por todas as mudanças políticas de nosso século.