E se usar a escravidão como “inspiração” vira moda? Por Marcos Sacramento

Atualizado em 16 de outubro de 2016 às 6:49

maria filo

 

A polêmica envolvendo a grife Maria Filó é mais um caso para alertar que passou da hora da escravidão negra ser vista aqui no Brasil como uma tragédia com as proporções do holocausto judeu.

Inspirada no trabalho do “pintor Debret”, a marca lançou peças com estampas de escravas negras trabalhando e servindo mulheres brancas. Já começou mal: na verdade, trata-se de Rugendas.

Quem reparou no desenho inconveniente foi a cliente Tâmara Isaac, que protestou em seu perfil no Facebook.

“Confere? É uma estampa de escravas entre palmeiras. É uma escrava com um filho nas costas servindo uma branca? Perguntei à vendedora se aquela estampa tinha alguma razão de ser ou se era só uma estampa racista mesmo”, diz um trecho da publicação, que até agora tem mais de 14 mil curtidas e 1.700 compartilhamentos.

A polêmica chegou à atriz Taís Araújo, que usou o Instagram para criticar a iniciativa desastrada da marca e parabenizar a moça que levantou a polêmica.

“A escravidão não pode virar “pop”, não pode ser vendida como uma peça de moda. A moda nos representa, nos posiciona, nos empodera, comunica quem somos. Não se pode fazer dela uma vitrine de uma história da qual devemos nos envergonhar”, escreveu.

Com a repercussão, a Maria Filó admitiu o erro e prometeu tirar das lojas as peças com a estampa infeliz.

“Nós da Maria Filó viemos a público pedir desculpas. Ao criarmos a estampa Pindorama, inspirada nas telas do famoso pintor Debret, não percebemos ao longo do processo criativo como tais imagens poderiam impactar tão negativamente nossos clientes e o público em geral. Está aí o nosso grande erro e por ele pedimos sinceras desculpas. Certamente o olhar que lançamos ao criá-la não foi o de ofender, o nosso filtro foi o da memória de uma época (…)”.

“Deste acontecimento, tiramos como lição uma oportunidade para reflexão: precisamos estar cotidianamente atentos aos valores que representamos, mesmo que de forma não intencional”, diz a nota.

Todo esse desgaste seria evitado se a escravidão negra fosse considerada uma enorme tragédia humanitária pela sociedade brasileira, uma ferida vergonhosa.

Por mais de três séculos, negros sequestrados da África e espremidos em navios negreiros foram desumanizados para servir de mercadoria e mão de obra no sistema colonial.

Só ao Brasil chegaram mais de 5 milhões. Os que sobreviviam aos suplícios da viagem eram submetidos ao trabalho extenuante e a toda sorte de abusos, como estupros e torturas físicas.

As consequências do período perduram até hoje na forma de estatísticas perversas, como as que fazem dos jovens negros os maiores atingidos por homicídios e minoria entre a comunidade universitária.

Nada disso impede que o período seja utilizado como influência “pop”, para usar as palavras de Taís Araújo.

No ano passado, uma peça publicitária do Ministério da Justiça colocou a escravidão no mesmo nível das imigrações voluntárias que ajudaram a formar o país.

Veiculada como parte de uma campanha contra a xenofobia, mostrava a foto de um rapaz negro com o texto “Meu avô é angolano, meu bisavô é ganês. Brasil. A imigração está no nosso sangue”, como se um futuro tranquilo e favorável aguardasse os africanos que aqui desembarcaram.

Na pesquisa que fiz para escrever sobre a gafe do ministério, encontrei várias pousadas e hotéis com o nome de “senzala” e um motel com suítes chamadas “alforria”, “pelourinho” e “grilhões”.

Tem que ser muito otimista para acreditar que o cenário mudará em breve e a escravidão passe a ser vista com a devida gravidade.

Mas os profissionais de marketing e criativos da área da moda bem que poderiam estudar com mais afinco a história do Brasil e conhecer melhor as questões relativas ao povo negro.

Nem que seja apenas para evitar crises de imagem nas empresas pelas quais trabalham.

 

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