Escrevi num livro editado antes das eleições (“A Economia Brasileira como Ela É”, Amazon) que anos de submissão ao neoliberalismo nos deixaram, entre as travas para impedir a retomada de nosso desenvolvimento econômico, o fantasma de um Banco Central independente. Há também travas fiscais, a meu ver. Entretanto, a do Banco Central é mortal, pois sua remoção demandará uma reforma constitucional para tirar do poder alguém que tem o respaldo pleno do sistema financeiro.
É preciso que a sociedade brasileira entenda do que se trata. O acordo político feito por Lula para governar não necessariamente implicará uma virada real na economia. Sequer uma garantia de mudança na área social. O passo decisivo que temos de dar é sair do domínio de uma “economia de especulação financeira” para uma “economia de produção”. Sem isso, os juros extravagantes patrocinados pelo BC sugarão todas as energias vivas da economia, mantendo-a estagnada.
A justificativa que o cidadão Campos Neto usa para manter taxas de juros básicas de agiotagem (13,75%) é que esta é a forma de combater a inflação. Trata-se de um escárnio. Não existe hoje exemplo no mundo de que inflação devida sobretudo à alta de custos possa ser combatida com aumento de juros. O desempenho norte-americano nesse campo é exemplar. O FED, banco central do país, a despeito de sucessivos aumentos da taxa básica de juros, não consegue reduzir a inflação.
O plano apresentando por Joe Biden, no início de seu governo, para reduzir a escalada inflacionária tinha muito mais sentido do que a estratégia ortodoxa do FED. Percebendo que a inflação estava sendo fomentada por problemas de custo – principalmente, ruptura de cadeias produtivas -, o plano previa uma análise dessas cadeias, uma ação efetiva para controlá-las e negociações específicas entre trabalhadores e patrões para rever salários (portos), entre outras medidas.
Não houve sucesso, basicamente, a meu ver, por duas razões. Primeiro, porque os liberais não deixaram que essas medidas que confrontavam seus preconceitos seculares fossem efetivamente adotadas. Segundo, porque o FED, jogando sua própria partida independente, continuou aumentando a taxa de juros, com reflexo direto nos custos de toda a economia e, portanto, empurrando a inflação generalizada ainda mais para cima. De nossa parte, seguimos o mesmo modelo.
Aqui a situação chega a ser indecente, pois temos a taxa básica de juros mais alta do mundo, simultaneamente com uma das inflações mais elevadas do mundo. Ao lado disso, um tecnocrata não eleito, quinta coluna que o grupo bolsonarista colocou no poder para assegurar justamente que a política monetária não seria alterada com a mudança de governo – bolsonarismo sem Bolsonaro -, não precisa prestar contas a ninguém, a não ser a seus patrocinadores do sistema financeiro.
Isso era plenamente previsível, como deixei claro no livro citado acima. Mas voltemos ao que significa uma “economia de especulação financeira” em face de uma “economia de produção”. Isso remonta às políticas que nos foram impostas pelo FMI quando, no início dos anos 80, fomos arrastados para a crise da dívida externa. Havia, em tese, duas formas de enfrentar essa crise. Aumentar a produção para gerar excedentes exportáveis, ou pagar a dívida acumulando dívida sobre dívida.
Escolhemos a segunda alternativa, a partir de empréstimos a juros baixos do próprio Fundo, mas que eram apenas um chamariz para atrair empréstimos mais caros do sistema bancário privado de que precisaríamos. Com isso, entramos na “economia de especulação”, de que não escapamos até hoje. O instrumento dessa política foi o BC. E não precisou que fosse legalmente independente. Bastaram as pressões do “mercado”, que o vigiaram religiosamente nas últimas décadas.
Sem uma ruptura política com esse sistema será virtualmente impossível restabelecermos condições de retomada do crescimento da economia. Isso seria perfeitamente possível, pois temos todas as condições: recursos naturais abundantes, principalmente energia limpa; mão de obra sedenta de trabalho; reservas internacionais que nos garantem acesso a importações básicas necessárias; possibilidades de acordos tecnológicos externos altamente favoráveis.
Entretanto, como convencer o Congresso a tomar o poder absoluto do presidente do BC? Acho que devemos pensar seriamente nisso. A solução passa por uma articulação entre política fiscal e política monetária, negociada no Congresso, nos termos da Teoria Monetária Moderna. A TMM admite déficit fiscal desde que orientado para gastos e investimentos físicos responsáveis do Estado. Isso é a base de uma “economia da produção”. Aumenta a oferta e evita inflação de demanda.
Em princípio, sou contra o sistema de emendas parlamentares. Acho que deputados e senadores não deveriam se meter de forma discriminatória no orçamento público proposto pelo Executivo. Entretanto, é perfeitamente possível conciliar, através do Planejamento central, as duas instâncias. Os parlamentares participariam do orçamento integrado nas esferas municipal, estadual e federal propondo suas próprias emendas individuais e de lideranças. Em contrapartida, teriam mais recursos.
A consequência disso é que, dependendo da extensão do orçamento, poderia haver mais espaço para emendas parlamentares compatíveis com ele. Em lugar de dividir os recursos públicos, eles seriam integrados de forma mais eficaz, segundo as prioridades da União, dos municípios e estados, conciliadas pelo orçamento central. Nesse contexto, a política monetária não dependeria da política fiscal, que seguiria seu próprio curso financiando principalmente a produção, e não a especulação.
É claro que a política monetária não poderia ficar inteiramente solta. O que é intolerável é acreditar que apenas aumentar ou manter em níveis elevados a taxa básica de juros, como acontece hoje, de alguma forma contribui para reduzir a inflação e, muito menos, o custo de vida. Diante do cenário internacional confuso e arriscado, seria mais prudente pensarmos em alguma forma de pacto social para aplicar aqui o que Biden tentou sem sucesso: atacar pressões inflacionárias nas cadeias produtivas!