
Enfim, Jair Bolsonaro conquistou a capa da The Economist. Não, não se trata de um triunfo de estadista, de uma menção honrosa pela condução da economia ou pela projeção do país no cenário global. O feito do ex-presidente, atualmente tornozelado e sob a tutela da Polícia Federal, foi aparecer ali como um delinquente prestes a acertar as contas com a Justiça. Nada de glória republicana, mas, ainda assim, uma página histórica: o Brasil ocupando o centro de uma das mais influentes revistas do planeta.
E o que a publicação britânica, porta-voz mundial do liberalismo e referência incontornável nos círculos de poder, reservou como manchete? Uma matéria de capa intitulada “Brazil offers America a lesson in democratic maturity”. Pois sim, foi o Brasil, tantas vezes visto como periferia, como laboratório precário, que agora se apresenta como exemplo. Exemplo de uma democracia capaz de sobreviver à ferocidade de seu algoz e, ainda assim, apontar caminhos para além de suas fronteiras.
Mais do que um elogio, tratava-se de uma advertência: segundo a Economist, os Estados Unidos precisam aprender com a experiência brasileira a enfrentar o fascismo trumpista. Washington deveria mirar Brasília não como inspiração exótica, mas como manual de sobrevivência democrática. É um daqueles raros instantes em que o olhar estrangeiro devolve ao Brasil uma imagem que nos surpreende a nós mesmos e que, por um momento, nos enche de orgulho. É quando o vira-lata caramelo, emblema de nossa inventividade afetiva, ostenta maior prestígio que as raças mais nobres exibidas nas passarelas europeias, mais desejado que um bulldog francês e mais valioso que um mastim tibetano.
Ainda hoje o Brasil oferece ao mundo uma lição inesperada. Neste exato momento, a Polícia Federal vasculha os subterrâneos financeiros de algumas das lavanderias do PCC, esse organismo simbiótico que encontrou no bolsonarismo não apenas cumplicidade, mas um parceiro de negócios. Durante o governo Bolsonaro, o Primeiro Comando da Capital deixou de ser uma empresa criminosa local de grande porte para converter-se em uma megacorporação transnacional. Nada disso ocorreu por acaso. Foi fruto de um ambiente político que corroeu instituições e de um terreno financeiro repentinamente afrouxado, fértil para quem precisava fazer circular capital ilícito com fluidez e discrição.
Paulo Guedes, o “posto Ipiranga” e guardião exclusivo do cofre nacional, costuma ser descrito como um liberal obcecado por planilhas, tão concentrado em colunas e gráficos que teria permanecido alheio às conspirações que fervilhavam ao seu redor. É a imagem confortável do tecnocrata distraído, cuja devoção ao equilíbrio fiscal o teria impedido de notar que seus próprios afrouxamentos de normas, suas flexibilizações de controles e seus sucessivos alívios de supervisão abriam corredores por onde o crime organizado transitava sem resistência. Como sou cético quanto às boas intenções dos financistas, tenho sincera dúvida se tamanha distração era genuína ou se a cegueira calculada não teria sido, afinal, parte do método.

Até quando se aceitará essa narrativa do ministro imaculado, que tudo comandava e, ao mesmo tempo, nada sabia?
Até quando Guedes será blindado como se fosse um mero espectador, quando o que está em jogo é a arquitetura de um governo que permitiu, pela ação direta de Bolsonaro e pela omissão estratégica de seu entorno, o florescimento de uma engrenagem criminosa em escala continental?
Não se trata de acusar, mas de questionar. O crescimento do PCC durante o bolsonarismo não foi acidente nem improviso: foi a consequência lógica de um projeto de poder que se nutria do crime. Bolsonaro forneceu a proteção política e institucional. O restante do governo, cada qual a seu modo, criou as condições para que a engrenagem funcionasse.
O Brasil, ensina a Economist, soube derrotar o fascismo nas urnas. Mas falta ainda uma lição de maturidade: reconhecer que o crime não prosperou à revelia do Estado, mas em seu interior. Só quando Bolsonaro for condenado como criminoso, que é, e quando seus aliados forem investigados sem blindagens seletivas será possível afirmar, sem ressalvas, que a democracia brasileira venceu.