“O discurso explícito de Bolsonaro de incentivo à exploração de áreas demarcadas gera violência”, diz especialista

Atualizado em 30 de agosto de 2019 às 9:54
Flávio de Leão Bastos Pereira, Doutor e Mestre em Política e Economia

“No que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena.” Jair Bolsonaro sempre declarou isso a plenos pulmões, desde a campanha. Depois de eleito repetiu a frase mais de uma vez para que não restem dúvidas.

Na verdade, a política indigenista do governo atual é até pior do que a retórica sugere. Não apenas nenhuma demarcação está em curso como as já existentes estão em risco.

Prova cabal é a aprovação de uma PEC (proposta de emenda constitucional) na CCJ da Câmara nesta última terça-feira. O projeto autoriza exploração agropecuária em terras indígenas.

Para tratar do assunto, o DCM entrevistou Flávio de Leão Bastos Pereira. Doutor e Mestre em Política e Economia com extenso currículo, ele é membro da Academia Internacional dos Princípios de Nuremberg e participante do Grupo de Pesquisa “Conflitos Armados, Massacres e Genocídios/CNPQ da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)”.

Autor do livro “Genocídio Indígena no Brasil – O Desenvolvimentismo entre 1964 e 1985”, Flávio recebeu o DCM na Universidade Mackenzie, onde é professor.

DCM: O projeto que passou na CCJ a primeira vista á curioso pois trata de produção agropecuária, algo que os indígenas já fazem e não precisariam de uma autorização para isso uma vez que as terras são deles. O que tem por trás disso?

Flávio de Leão Bastos Pereira: O que se quer é explorar a riqueza das terras indígenas. Alguns governadores deixaram isso bem claro na reunião com o presidente ocorrida nessa semana. Eles não querem as terras, querem o acesso às riquezas para desenvolvimento das suas regiões.

Mas pode isso?

Vamos partir de um referencial, a Constituição Federal de 1988 que é também uma conquista dos próprios povos indígenas. Nela estão assegurados o respeito à crenças, religiões, cultura, educação, saúde.

Os artigos 231 e 232, tratam do tema das terras. Primeiro, a posse é permanente, mas não é propriedade. Então alguém pode tomar? Não. Pela Constituição as terras indígenas pertencem à União. Não se pode ceder, alienar, nada disso. Então, ainda que não seja propriedade, há uma certa segurança.

A questão é: a Constituição permite exploração das terras indígenas? Ela não proíbe, mas depende de duas condições: prévia consulta aos povos indígenas e prévia autorização destes.

Isso não ocorreu…

Evidente que não. Além disso, uma das PECs que tramitam visa retirar o texto da CF que exige a autorização dos indígenas para exploração de suas terras. E essa é só uma delas. Existem hoje no Congresso em torno de 100 sugestões que violam os direitos indígenas. Fiz esse levantamento ainda hoje.

Todo esse voluma complica até para os indígenas acompanharem…

Complica. Mas é pior pois algo assim nem poderia ser votado. Viola a cláusula pétrea, artigo 60 inciso 4: ‘Não haverá deliberação de proposta de emenda constitucional tendente a abolir direitos individuais’.

Embora fale em individuais, aqui é preciso interpretar envolvendo direitos coletivos porque toda estrutura sociológica indígena é comunal. Para eles não há uma visão de individualização da propriedade.

Isso é uma diferença fundamental na estrutura de sociedade…

Sim, fundamental. Por isso que o Ministério Público propõe ações em defesa dos povos indígenas pois é papel do MP a defesa dos direitos coletivos e difusos.

Nessa reunião com governadores da Amazônia Legal, a crítica era de que as reservas indígenas engessam, inviabilizam os Estados economicamente. O que pensa sobre esse discurso de que não se produz nada?

Citei na minha tese os dados de uma experiencia na qual o governo de São Paulo apoiou povos indígenas e houve uma elevação relevante na produção de alimentos. Ou seja, eles produzem sim.

O ponto é: quantas terras existem no Brasil que são latifúndios improdutivos ou que produzem monocultura? As terras indígenas equivalem a algo entre 12 e 13% das terras.

E elas são utilizadas para produção, são preservadas e essenciais para a sobrevivência desses povos e suas culturas. Estamos falando de 305 povos.

Existe o senso comum de serem também extrativistas irresponsáveis…

Os antropólogos demonstram isso com toda clareza: toda a produção indígena segue técnicas que renovam a terra. São conhecimentos milenares que são desconsiderados pela sociedade chamada dominante ou envolvente. Os maiores preservadores do bioma são os povos indígenas, sem dúvida.

Por que persiste a imagem de que esses povos são indolentes? Nas escolas era comum a difusão da ideia que não serviam nem para ser escravos.

É uma construção bem pensada e uma mentira. A verdade é que a matança gerou escassez dessa mão de obra, o que levou ao sequestro dos negros africanos, um outro genocídio da história.

Até 20 ou 30 anos de colonização já não existia grande população indígena no litoral, mas a escravização prosseguiu.

O movimento abolicionista depois só mudou o cenário de escravizar para o discurso ‘civilizacional’ interferindo na cultura, evangelizando etc. Hoje esse fetiche não existe mais, hoje ele é desenvolvimentista.

A ideia é ‘posso espoliar o que eu puder para desenvolver’. O discurso que justifica isso ainda é o de que são vagabundos, indolentes. É proposital.

Os povos indígenas sempre foram enfáticos em afirmar que não querem mais política de integração, política de tutela. É correto querer integrá-los?

Não. Integração ou assimilação é vista, há muitos anos no mundo todo, como etnocídio. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) tinha uma convenção assimilacionista. Foi abandonada.

Temos a declaração dos povos indígenas da ONU e a declaração dos povos indígenas das Américas, mas são soft law, são declarações apenas, não são atos vinculantes.

Até porque esse discurso carrega um paradoxo. Ele fala em integração, mas faz chacota quando vê o índio com um celular, por exemplo. O que explica isso?

Outro discurso preconceituoso. Basta perguntar a quem afirma isso se ele ainda se veste como seu tataravô, ou se ainda anda de charrete pela avenida Paulista.

As sociedades mudam e com as sociedades indígenas não é diferente. Elas mudas, elas produzem e têm direito, inclusive, a lucrar com suas propriedades.

Aliás, não são poucos os casos de grifes que vendem roupas com grafismos indígenas. Recentemente tivemos o caso da Alpargatas com Havaianas que usavam grafismo da etnia Yawalapiti ou da loja Zara com as mulheres Chiapas. Então como dizem que eles não produzem? Curioso isso. Esse discurso é preconceituoso para impedir que eles explorem as suas próprias riquezas.

A bancada ruralista e o agronegócio estão ditando o jogo no governo atual?

Elas têm um discurso que, de uma certa maneira, não parece incoerente: produção. Perfeito, mas produção precisa ser conciliada com a sustentabilidade, com o sócio-ambientalismo.

Os povos indígenas são ‘originários’, não entram na classificação de povos ‘tradicionais’ como se encaixam os quilombolas, por exemplo, e que também são atingidos por essas medidas, diga-se. Essas culturas dependem da preservação e manutenção das florestas.

E ainda há um detalhe. Temos entre 30 e 40 povos, todos na Amazônia, em isolamento voluntário que jamais entraram em contato com homem branco. Não se sabe nada sobre eles. A Funai até então monitorava e mapeava pois são nômades. Mas agora…

A Funai está sob ataque feroz…

Esse órgão praticamente não existe mais, a ponto de o presidente, um general, se demitir com o argumento de que o governo atual odeia os indígenas. Um general!

Nesse tema o PT também não tem muito de que se orgulhar, certo?

Não. Belo Monte foi um caso gravíssimo. O MPF entrou com 12 ações, a Corte Interamericana condenou o Brasil.

Ou seja, esses extermínios sempre ocorreram. Mas a situação agora é mais aguda. Vamos aos atos: Desmonte da Funai; Restrição e proibição da fiscalização pelo Ibama; Liberação de armas na área rural; O discurso explícito de incentivo a quem queira explorar áreas de reserva.

Isso tudo gera comportamentos. O índice da violência contra indígenas está aumentando. Há queima de aldeamentos, invasão por garimpeiros etc.

A combinação desses fatores se caracteriza como ‘ecocídio’? O que é isso?

Existem 4 tipos de crimes internacionais: genocídio, crimes contra a humanidade, crime de guerra e crime de agressão (a invasão de um país por outro).

Esses crimes são imprescritíveis e seguem princípios estabelecidos em Nuremberg lá em 1946. Não importa qual o cargo do acusado. Caso claro foi Milosevic na ex-Iugoslávia.

O genocídio é um crime praticado de forma dolosa, intencional que visa exterminar total ou parcialmente um grupo por razões étnicas, raciais ou religiosas.

Mas hoje há uma nova visão de que a destruição do meio ambiente, de tal forma que inviabilize a existência de povos dependentes – não só indígenas, mas ribeirinhos por exemplo – nesse ecossistema destruído também possa configurar genocídio, chamado de ecocídio.

É possível enquadrar Bolsonaro por isso?

Em 1998 foi aprovado o Estatuto de Roma, que criou e disciplinou o tribunal internacional penal. Então é preciso provar a intenção de exterminar um grupo. É difícil provar a intenção, pois isso tudo é feito de maneira indireta.

Seu livro aborda o genocídio indígena no Brasil durante a ditadura, entre 1964 e 1985. Sob os militares foi o pior período, o mais cruel?

Absolutamente cruel. Não dá para afirmar que tenha sido o pior período, mas um dos mais agudos. Houve ações diretas como bombardeios, e indiretas como obras de infraestrutura que levaram ao rompimento de bases existenciais.

A construção da BR 174, por exemplo, acabou com o povo Waimiri-Atroari na região amazônica.

O relatório da Comissão Nacional da Verdade em 2014 deu conta de mais de 8 mil mortes. E quem quiser desmerecer esse relatório, peço que leia o relatório Figueiredo (do procurador Jader Figueiredo) produzido em 1968. Um relatório produzido pelo e para o regime a pedido do ministro do Interior na época, um general.

Ainda durante a campanha de 2014, Sônia Guajajara criticava Dilma e também dizia que nem Marina Silva nem Eduardo Campos sequer sabiam o que eram povos indígenas. Há algum quadro político que os represente de fato?

Hoje não creio. Essas lideranças precisam ser suportadas e apoiadas por povos indígenas como a própria Sônia e eles precisam ser representados no Congresso.

É natural que haja a bancada rural, a religiosa, pois a sociedade brasileira é assimétrica e multicultural, então precisa compreender a todos. Então é preciso uma maior representação indígena, uma participação ativa e direta. Mas o desmonte da Funai nesse aspecto é um grande retrocesso.

Há exemplos de países que obtiveram êxito em atos de reparação histórica?

Todos os países passaram pelo extermínio. Da Austrália ao Canadá.

O Canadá criou uma grande comissão da verdade para estudar o caso de escolas canadenses onde ocorriam abusos como proibir o uso do idioma, além de as crianças sofrerem abusos físicos e sexuais.

Criou-se um fundo de cerca de 4 milhões de dólares, as cortes apreciaram o caso e houve pedido de desculpas e pagamento de indenizações. Mas precisa haver predisposição, coisa que aqui não tem.

Os EUA firmaram tratados que eles mesmos desrespeitavam, mas isso foi corrigido aos poucos e ações efetivas foram tomadas. O resultado é que hoje nos EUA a população indígena é maior que a população indígena daqui.