Eduardo Bolsonaro, a Bíblia, Hamã, o Coiote e o Papa-Léguas. Por Lenio Streck

Atualizado em 21 de julho de 2025 às 18:45
Eduardo Bolsonaro, parlamentar que fugiu para os EUA. Foto: reprodução

É inadmissível no direito que a “culpa seja da vítima”, algo como “foi assaltada às dez da noite, mas, quem mandou sair àquela hora”. Colocar a culpa da vítima é como absolver o estuprador porque a vítima vestia roupa sensual-provocativa. Ou “o assaltado morreu porque reagiu”. Como se não fosse direito meu reagir a uma agressão… Isso sim é justificar o crime. O cara pode me matar porque eu reagi…!

Aceitar a culpa da vítima é como aceitar que alguém possa se beneficiar da própria torpeza. Isto é, o réu dizer que o crime aconteceu porque a vítima “aceitou” ou “provocou” o crime, é como o réu matar os pais e querer usar a seu favor a clemência “por ser órfão”.

Lembro aqui do famoso caso Riggs v. Palmer (EUA, 1885), em que o neto (Elmer) matou o avô para ficar com a herança. O neto era beneficiário do testamento do rico avô. Não havia lei que proibisse que o beneficiário, mesmo se matasse o testador, ficasse com os bens. O neto calculou tudo. Só que não levou. O Tribunal de New York decidiu: ninguém pode se beneficiar da própria torpeza (o famoso venire contra factum proprium).

Pois é disso que se trata quando vemos agentes da extrema direita política colocando a culpa da crise com os EUA no STF ou no governo. Os bolsonaros criaram o fato e agora usam esse fato a seu favor e contra o STF e o governo. Ao que parece, eis um típico caso de venire contra factum proprium.

Vejamos nota do painel da Folha de S.Paulo do dia 20 de julho:

Supremo Tribunal Federal. Foto: Reprodução

“INIMIGO PÚBLICO:  Aliados de Bolsonaro contam com pesadas sanções ao Brasil pelo governo dos EUA nos próximos dias para virar o jogo contra Alexandre de Moraes na opinião pública. Segundo um dirigente do partido de Bolsonaro, a população vai querer ‘linchar” – metaforicamente – o ministro do STF”.

O mesmo ocorre com as manifestações nas redes sociais e de governadores defensores de Bolsonaro. Dizem: é grave a crise com os EUA; são injustas as taxações, mas o STF é autoritário, o governo Lula não colabora etc. No “mas” está o segredo. As sanções são ruins, mas a vítima “colaborou” para com o crime. Enfim, a culpa é da vítima!

Com isso se absolve quem promove o sancionamento a toda uma nação (com as graves consequências econômica-sociais e políticas) e se absolve quem provocou a ira do sancionador: eles, os bolsonaros. Ou seja, o Lobo come o cordeiro porque ele sujou a água que corre abaixo de onde está o Lobo.

Se assim o for, é muito fácil: basta que se crie todo e qualquer tipo de constrangimento e a responsabilidade total é do governo de ceder e “negociar”? Percebem o tamanho do problema que isso pode gerar? Oiçam o jurista: precedentes são perigosos.

Celso Barros, na mesma Folha de 20 de julho, diz “quando chamou os EUA para intervir no Brasil, Bolsonaro topou todos os riscos”. E onde está escrito Bolsonaro, leia-se o enviado especial ao estrangeiro, Eduardo, o conspirador contra a própria pátria.

Quer dizer: a culpa é de Moraes, que deve ser linchado; a culpa é do Supremo Tribunal, que cumpre a lei; a culpa é do PGR, que cumpriu o seu dever; a culpa é do governo Lula, que não aceita ser surrado. A culpa só não é de quem pediu a intervenção dos EUA. A culpa é do avô que foi assassinado pelo neto Elmer. Afinal, no caso de 1895, o avô foi namorar uma jovem e o neto achou que, com isso, o vovô mudaria o testamento. Como vovô é culpado, que se o elimine. A culpa é da garota que escolheu usar uma minissaia. Tsc, tsc.

Como vivemos em tempos de niilismo, lembro aqui da invenção do conceito: está em Crime e Castigo, de Dostoievski. O personagem Ralkolnikov mata a dona da pensão, rouba-lhe o dinheiro e diz: “cometi um gesto extraordinário”. Ele, como Eduardo, acredita ser “extraordinário” e “tem o direito de cometer crimes para o bem maior”. Ao vibrar com as sanções anunciadas, tem certeza de que cometeu um gesto extraordinário…! [1] “- Que venham mais sanções”!

Mas, exatamente porque vivemos em um Zeitgeist (espírito do tempo) niilista, receio que, à moda do que está em Nietzsche “não há fatos, há apenas interpretações”, a narrativa venha a encobrir a realidade. E a culpa seja afixada na vítima. A vítima é o Brasil, o STF, os ministros do STF (do qual oito ministros já tiveram vistos cassados, junto com familiares), o PGR, a PF. Os cordeiros tomam água. O lobo lhes acusa de sujarem a água. Os cordeiros dizem “mas você está na parte de cima do riacho; é impossível que sujemos a água”. O lobo: não importa; vocês são autoritários; sinto-me oprimido por vocês.

A traição à pátria: eis o gesto extraordinário cometido por nossos Raskolnikov Bolsonarus. E a culpa é da senhora dona da pensão. A culpa é do avô. A culpa é do carneiro. A culpa é da vítima. A culpa é do povo brasileiro.

Não me surpreenderia se, no fim de tudo, a culpa fique com o STF. “Onde se viu colocar tornozeleiras em que conspira contra o próprio país e contra quem tentou golpe de Estado”? “Processar quem cometeu gestos extraordinários”?

Vamos falar a sério. Esse assunto está indo longe demais. Os golpistas passaram de todos os limites.

Papa Léguas e Coiote. Foto: Warner Bros

A propósito: o lema do bolsonarismo é Pátria acima de tudo, Deus acima de todos. Bom, isso já foi para às cucuias. Mas o colunista Ricardo Araujo ajuda, ao remeter Eduardo Bolsonaro à Bíblia (Afinal, não é a palavra de Deus?). Araujo lembra de um desenho animado que todos conhecem: o Papa-Léguas sempre perseguido pelo Coiote.

Pois o Papa-Léguas pode ter sido inspirado na Bíblia, porque o Coiote tenta caçar o lépido pássaro e acaba sendo vítima das próprias armadilhas. Sempre. Na Bíblia, o Papa-Léguas é Mordecai, e o Coiote é um vilão chamado Hamã, que quer destruir os judeus, a começar por Mordecai, seu rival, e manda construir uma forca de mais de 20 metros, para executá-lo nela. Adivinhem quem é o primeiro enforcado? O Coiote, quer dizer, Hamã (quem quiser conferir, ver Ester 2:7-17). [2]  Hamã era o golpista denunciado por Mordecai (vejam a coincidência…). Está na Bíblia.

De todo modo, Hamã foi o primeiro especialista em dar tiro no pé. Eduardo Bolsonaro foi pedir intervenção e deu no que deu. Seu pai se deu mal. Ele mesmo mandou vir produtos da Acme (lembram do desenho?), que estão estourando na sua cara.

Mas, muita atenção: neste Zeitgeist pós-moderno, não há mais fatos, só narrativas. Cuidado com o que disseram os líderes bolsonaristas: nos próximos dias virão mais sanções e Moraes (e, eu acrescento), o STF e o governo, vão ser transformados em vilões… Colem isto na geladeira. Apesar de tudo que estamos vendo, corremos o risco do “fator Raskolnikov”: ao pedir intervenção, sanções e o escambau contra sua pátria, Eduardo e seu pai cometem um “gesto extraordinário”.

Brasil acima de tudo – mas não tudo, né, convenhamos! Pera lá! Acima de tudo pero no mucho!

Esse pessoal está muito chato. Nem um golpezinho de estado? Nem uma conspiraçãozinha contra a pátria? Não dá para fazer nada mesmo e o STF já vem censurando! Que coisa, não?

Tsc, tsc.

Venire contra factum proprium. Em latim fica mais claro!

[1] Observação tipo spoiler: o resto do livro mostra Raskolnikov remoendo a culpa. E fica paranoico.

[2] Mordecai é um judeu exilado na Pérsia e primo de Ester, que se torna rainha. Mordecai denuncia um plano para assassinar o rei e, posteriormente, ao impedir que Hamã, um oficial persa, exterminasse os judeus. Ester, por sua vez, usa sua posição de rainha para interceder pelo seu povo e reverter o decreto de Hamã. O traidor, Hamã, constrói a forca e a “inaugura…”.