“Eles têm o Capitão América e nós temos Bolívar”: a Venezuela em 3 relatos selvagens. Por Maringoni, de Caracas

Atualizado em 13 de setembro de 2019 às 7:37
Arquitetura brutalista e imagem oficial

Esta reportagem é fruto de projeto de crowdfunding do DCM

1. CAPITÃO AMÉRICA ENFRENTA BOLÍVAR

“Eles têm o Capitão América e nós temos Bolívar”. Para quem se espanta com a comparação, Ernesto Villegas, 49, ministro da Cultura do governo venezuelano vai logo avisando: “É uma maneira de dizer. O super-herói americano resolve tudo sozinho e o nosso Bolívar organiza o povo contra o imperialismo”.

Villegas sabe que comanda uma área não prioritária numa administração que está às voltas para fazer comida chegar à mesa do venezuelano. “Mas não adianta colocar hierarquias; a batalha pela consciência tem tanta importância quanto a luta contra a fome”. Uma não existe sem a outra, destaca.

Filho de militantes comunistas, Villegas é um jornalista sorridente e que pouco caso faz das formalidades do cargo que ocupa há menos de um ano. Anteriormente foi ministro das Comunicações.

Seu irmão Vladimir, nove anos mais velho, foi um quadro histórico do chavismo – como embaixador no Brasil e no México -, até pular do barco e se unir à oposição. A divisão familiar em campos opostos não é algo incomum num país polarizado há anos.

Villegas garante que, apesar da precariedade orçamentária, vários programas culturais seguem em pé, como a distribuição de livros para crianças e adolescentes em idade escolar, a formação musical – “um milhão de crianças têm acesso à orquestra nacional” – e a instalação de computadores na maioria das escolas públicas do país.

O que o preocupa mesmo é a guerra midiática nas redes sociais. “Vimos o que ocorreu no Brasil em 2018. As campanhas da direita não vem mais pela TV ou rádio. Vêm pelas redes sociais e pelas fake news”. E solta uma definição oficial: “A batalha cultural saiu das ruas e está nos bolsos de cada um, em seus celulares”. E confessa: “Ainda estamos engatinhando nesse terreno”.

2. A INCRÍVEL MOEDA QUE EVAPOROU

Enfiar a mão no bolo e tirá-la cheia de dinheiro é algo que não quer dizer absolutamente nada na Venezuela. A hiperinflação, que chegou a ser projetada em 1 milhão por cento em 2018, triturou o valor da moeda. Há um ano entrou em vigor a reforma que eliminou cinco zeros do bolívar.

Dez anos antes, na reforma anterior, três zeros já haviam sido cortados.

Atualmente, um dólar vale 20 mil bolívares. As cédulas da moeda nacional começavam com notas de 2, 5 e 10 bolívares. Essas desapareceram. Atualmente, circulam as de 500, 1000, 2000, 5000. Em junho, foram lançadas as de 10000, 20000 e 50000. Ou seja, a nota mais alta vale 2,5 dólares.

Quem quiser pagar em bolívares uma conta de dez dólares em notas de 500 bolívares terá de levar no bolso um volume de 400 cédulas. Convenhamos, é algo inviável.

A volatilidade acarretou duas iniciativas. A primeira é que quase ninguém usa dinheiro vivo nas transações. Tudo é feito com cartões bancários, em uma intensidade maior que a brasileira. A segunda é que a economia está praticamente dolarizada. Paga-se taxi, restaurantes e até camelôs na moeda dos EUA.

O problema maior para a população não é a forma de pagamento. Trata-se do fato de que os preços – em especial de produtos industrializados – estão indexados em moeda forte e os salários não. O resultado é que, há um ano, o salário mínimo equivalia a 30 dólares. Agora vale dois.

Quem vai ao McDonald’s para tomar um milk shake espantado. O preço é de 80 mil bolívares (4 dólares), ou dois salários mínimos.

Mesmo assim, é difícil estabelecer paridade do poder de compra com outros países. Há tantos subsídios – gasolina, luz, água, metrô, material e uniforme escolar, entre outros – compondo um salário indireto, que comparações são imprecisas. Mas há uma unanimidade nacional sobre a média dos salários.

É pouco, muito pouco.

Ernesto Villegas

3. A CAPITAL SEM CAPITAL

Os quatro municípios que formam a grande Caracas – Libertador, Chacao, Baruta e Sucre – têm uma população estimada em 6 milhões de habitantes, pouco menos de um quinto do total do País (32 milhões). Como em toda metrópole latinoamericana, há bolsões de miséria e violência quase crônicos, ao lado de diminutas áreas abastadas.

Os milhares de camelôs espalhados pelas ruas são um retrato vivo do estancamento econômico. Embora não exista lixo acumulado nas ruas, como em outros tempos de crise, a decadência da zeladoria urbana é marcante.

Para completar, há algo familiar ao ambiente brasileiro: há grades, cercas eletrificadas, arames-farpados, guaritas, condomínios fechados e seguranças particulares ostensivamente armados.

Quem anda pela capital não deixa de sentir certa semelhança com o Rio de Janeiro. Falta o mar, elemento essencial na paisagem carioca. Mas outras características estão lá, a vista de todos. A região central fica num extenso vale, todo rodeado por montanhas, nas quais se penduram incontáveis barracos de favelas.

E há o calor, muito calor, seco e sufocante, com permanente falta de ventos, por força do maciço montanhoso.

Algumas partes – especialmente aquelas erigidas na década de 1970, tempos em que o preço internacional do petróleo aumentou 12 vezes em 5 anos – bem poderiam formar um museu a céu aberto da “Venezuela saudita”, como o país era chamado.

Vias expressas e elevadas rasgaram quarteirões e bairros. Largas avenidas se abriram onde antes só existiam acanhadas vielas e um moderno metrô – hoje também decadente – começou a circular pelas entranhas da capital. Uma arquitetura brutalista e monumental, feita de concreto e vidro, espalhou-se pelas zonas central e leste.

O complexo do Parque Central foi erguido por essa época: um imenso conjunto de edifícios residenciais e comerciais, que contempla duas torres de 27 andares, o gigantesco teatro Teresa Carreño – cuja sala principal dispõe de 2,4 mil lugares -, supermercados, livrarias restaurantes, milhares de salas, apartamentos, lojas, ministérios, órgãos públicos etc.

Nada detinha a fúria edificadora dos petrodólares em cascata. E, coroando tudo, a sensação de que ninguém precisava pagar impostos, pois o dinheiro brotava do solo como mágica. A bomba impulsionadora desse mundo era a poderosa Petróleos de Venezuela S. A., a PDVSA, criada a partir na nacionalização, em 1976, e que chegou a ser a maior empresa da América Latina.

Nos dias que correm, lamentavelmente a decadência venezuelana não é uma exceção em nosso continente.

No metrô da Venezuela, ninguém paga