Elite que persegue Paulo Galo é descendente dos bandeirantes

Atualizado em 7 de agosto de 2021 às 16:54
Estátua do Borba Gato é incendiada em SP. Foto: Lucas Porto

Publicado na Rede Brasil Atual:

Ao assumir participação no incêndio da estátua do bandeirante Borba Gato, o líder dos Entregadores Antifascistas Paulo Lima, o Galo, entrou definitivamente no radar da polícia e da Justiça de São Paulo .

Negro, morador de periferia e entregador de aplicativos, o ativista tem uma origem social bem distinta dos ocupantes do alto escalão da burocracia estatal que o mantém preso.

Parte significativa dessa elite política e econômica paulista, assim como em todo o centro-sul brasileiro, é descendente direta dos antigos bandeirantes. A origem colonial brasileira, representada por monumentos como o de Borba Gato, não é coisa do passado.

“A questão das estátuas é uma questão da própria representatividade e da autoimagem da formação da classe dominante. Então, quando alguém faz o protesto contra uma estátua de bandeirante, as elites sabem que se está questionando o latifúndio histórico no Brasil”.

A avaliação é do professor Ricardo Costa de Oliveira, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Autor de quatro livros sobre o tema, ele estuda a formação da classe dominante brasileira a partir da genealogia, uma metodologia de pesquisa que reconstrói as famílias ao longo de gerações.

“Quando investigamos todas as nossas instituições políticas, são todas atravessadas por formas de reprodução familiar. Por isso que o nepotismo é uma categoria política tão importante no Brasil. São as famílias políticas que dominam todas as instituições”, explica.

Bandeirantismo no poder
Um exemplo está na Secretaria estadual de Segurança Pública de São Paulo, responsável pela atuação da Polícia Civil, que investiga Paulo Galo pelo incêndio à estátua. O titular da pasta é o general da reserva João Camilo Pires de Campos, que vem de uma das principais famílias de bandeirantes paulistas.

Segundo o professor da UFPR, o militar tem antepassados de grande destaque e poder. Pires de Campos é descendente das famílias Pires e Camargo que, entre 1640 e 1660, protagonizaram na então vila de São Paulo uma sangrenta batalha pelo controle de instituições políticas.

“Ou seja, é mais uma genealogia bandeirante deste secretário de segurança que foi general do Exército. Há pesquisas que mostram que quase todos os oficiais generais são herdeiros de famílias militares, que sempre estiveram nos mais altos postos”, comenta Oliveira.

Judiciário
Na busca pela liberdade de Galo, a defesa do entregador de aplicativos ingressou com um pedido liminar de habeas corpus no Tribunal de Justiça (TJ-SP). A solicitação foi negada, e a prisão foi mantida com o propósito de forçar o detido a delatar outros envolvidos no incêndio.

Galo foi vítima de uma “prisão política”, na avaliação de seus advogados. A origem familiar de um dos principais membros do TJ-SP pode ajudar a explicar o encarceramento do ativista, cujo perfil não se enquadra nos pré-requisitos jurídicos da prisão temporária, à qual ele foi submetido.

O presidente do TJ-SP, Geraldo Francisco Pinheiro Franco, também é mais um dos poderosos descendentes de bandeirantes.

Formado pela Faculdade de Direito mais tradicional de São Paulo, o Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo (USP), ele ocupa o mesmo posto de seu pai, Nelson Pinheiro Franco, que presidiu o Tribunal na década de 1980.

É comum, segundo o professor da UFPR, que cargos importantes passem de pai para filho, quase como se fossem uma herança de família, especialmente no Poder Judiciário.

“Quase todos são de famílias de elite, têm uma visão de mundo político extremamente conservadora e utilizam o direito penal como instrumento de guerra contra trabalhadores rurais, negros, indígenas, favelizados”, afirma Oliveira.

Executivo e Legislativo
Governador de São Paulo, o tucano João Agripino da Costa Doria Junior – ou apenas João Doria – também tem um “pé” no bandeirantismo pelo lado da mãe, Maria Sylvia Vieira de Moraes Dias.

Já pelo lado do pai, o empresário e político João Agripino da Costa Doria Neto, é herdeiro de uma das famílias mais tradicionais de senhores de engenho da Bahia.

Mas não só de sangue bandeirante vive a classe dominante paulista. “Na análise do poder, quando não há genealogia bandeirante, que é bastante presente, nós temos também famílias de imigrantes italianos e de origem europeia mais recente, algumas há cinco gerações apenas em São Paulo”, explica o professor.

É o caso da família do presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, Carlos Eduardo Pignatari (PSD), que tem grandes fazendas na região de Votuporanga, interior do estado. Ao acumular riquezas, famílias de origem estrangeira tornaram-se também latifundiárias, incorporando os ideais conservadores dos clãs tradicionais.

“Tudo isso significa que boa parte da classe dominante brasileira é descendente dos mesmos grupos que já estavam no poder no período colonial, depois, com a independência no período imperial, e assim sucessivamente em todos os ciclos republicanos até os dias de hoje”, observa o professor da UFPR.

Projeto de sociedade em disputa
Assim como os altos membros da burocracia estatal, o sangue bandeirante está nas famílias de grandes empresários, latifundiárias e os barões do setor financeiro. Do outro lado da moeda, está o setor majoritário e mais pobre da população, que tem origem justamente nas vítimas dos desbravadores.

“Podemos observar que praticamente todas as estátuas de bandeirantes possuem armas. São figuras armadas simbolizando a violência social política que caracterizava e ainda caracteriza a classe dominante brasileira”, analisa o professor Ricardo da Costa Oliveira.

Para ele, a discussão gerada pelo incêndio à estátua não diz respeito apenas à preservação de uma memória longínqua, mas sim o embate entre projetos de sociedade antagônicos, portadores de expectativas muito distintas para o futuro do Brasil.

“Estamos entre uma sociedade com o estado mais igualitário, com democracia, cidadania, educação e preservação do meio ambiente e aquele antigo regime, que é o Brasil da exclusão, da violência contra negros, indígenas, do analfabetismo, da destruição do meio da natureza. É isso que está em jogo nos protestos contra estátuas desses bandeirantes”, conclui Oliveira.