Em 2020, 12 crianças já morreram baleadas no Rio

Atualizado em 8 de dezembro de 2020 às 15:17
Emilly (de óculos) e Rebecca morreram após serem baleadas em Duque de Caxias. Foto: Reprodução/Jornal Extra

Publicado originalmente no site da Rede Brasil Atual (RBA)

Do início do ano para cá, de acordo com levantamento do portal G1, ao menos 12 crianças já morreram baleadas no estado do Rio de Janeiro. As duas vítimas mais recentes são as primas Emilly Vitória, de 4 anos, e Rebecca Beatriz, de 7 anos. As duas crianças foram assassinadas em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, vítimas de um tiro de fuzil que, segundo seus familiares, foi disparado por policiais militares. Elas brincavam na porta de casa quando foram atingidas na última sexta-feira (5), por volta das 20h30.

A avó de Rebecca e tia de Emilly, Lídia da Silva Moreira Santos, contou ao jornal O Globo, que viu os policiais atirarem da viatura em direção à rua que estava cheia de crianças e moradores voltando do serviço. Sem confronto com criminosos, destacou a avó, de uma viatura Blazer da PM, parada em frente à rua, os agentes fizeram uns dez disparos de fuzil.

“Quando os policiais foram embora, atravessei e vi a Emilly atingida na cabeça, já sem vida. Depois minha nora veio gritando dizendo que tinham matado a Rebecca também. A mesma bala que pegou a Emilly atingiu o coração da Rebecca. Ela deu uns passos e caiu no quintal. Quando vi que ainda estava respirando, corri para a UPA de Sarapuí, mas já era tarde”, descreveu Lídia ao jornal.

‘Infelizmente, elas viraram estatísticas’

A assessoria da PM negou que os policiais tivessem atirado. Em nota, a corporação declarou que a equipe do 15º Batalhão estava em patrulhamento na rua Lauro Sodré, quando disparos foram ouvidos e eles seguiram em “deslocamento”.

Outras testemunhas que presenciaram a ação, no entanto, também contestaram a versão da PM, reforçando que o carro da polícia “parou do nada na rua e atirou na direção em que as crianças estavam”. “Eram crianças que estavam brincando. Elas tinham terminado de tomar banho e foram pro portão da casa da avó e aconteceu tudo isso. Estamos todos desolados. Infelizmente elas viraram estatística, não era o nosso sonho”, disse a prima de Emilly e Rebecca, Ana Lúcia Alves de Souza, ao UOL.

Em comum, todas as 12 crianças baleadas no Rio neste ano são negras e periféricas. A estatística, que suas famílias lamentam, reforça que além de um cenário de crise econômica e sanitária, agravado pela pandemia – que já afeta as comunidades mais pobres –, há também a política de “insegurança” pública que atinge primeiro os periféricos.

Gastar para matar gente

A segurança no Rio tem autorizado cerca de R$ 20 bilhões anualmente que “gasta para matar gente”, como adverte a cientista política, antropóloga e especialista em Segurança Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Jacqueline Muniz.

Em entrevista a Glauco Faria, do Jornal Brasil Atual, a especialista lamenta mais esse caso de crianças baleadas no Rio, vítimas do que chama de “bala achada”. “Aquelas crianças estavam na calçada, alguém que atirou numa ação individual, atirou sem alvo. Uma ação provocativa, portanto, aparentemente um uso excessivo e abusivo de força, porque aquelas vidas pareciam não importar. Tiro de advertência para o lado diante de uma possível suspeita?”, questiona. “Que poder é esse ilimitado de polícia, quem o autorizou e o concedeu? O poder de polícia é da sociedade, administrado pelo Estado e não do policial e da polícia”, adverte.

O caso também levanta questionamentos sobre o descumprimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635. Conhecida como a ADPF das Favelas, que emprestou limites técnicos à operação policial nas comunidades do Rio. “É preciso que se explicite qual era a situação de excepcionalidade, de urgência, de fato inadiável que leva a polícia a agir em áreas sensíveis maximizando riscos, em vez de reduzi-los”, aponta Jacqueline.

A especialista cobra também controle e transparência das atividades policiais. De acordo com ela, é preciso discutir a doutrina de uso da força e quais são os protocolos públicos de ação. “É isso que delimita profissionalmente a ação de polícia antes, durante e depois”, explica. Do contrário, garante ela, há uma “dimensão do pode tudo, ‘vai lá e resolve’. Que tem a ver com essa experimentação do medo aparelhando a população cotidianamente”.

Superar o medo

“E essa linguagem do medo, esse discurso, ele faz com que cada um multiplique as suas razões de cor, de classe, de renda, gênero, de orientação sexual, religiosa, fazendo com que cada cabeça seja uma sentença. Que sigamos ameaçados e com medo, subindo cercas, muralhas e vendo no próximo um inimigo. Sentir medo é legítimo, mas aceitar o aparelhamento do medo é abrir mão do nosso lugar de cidadão”, acrescenta.

Esse “medo que paralisa”, como aponta a especialista, é o que explica também o “estado de naturalização” da tragédia que o país vive hoje. Em que “todo dia é dia da gente chorar pelos mortos”, como lamenta Jacqueline.

“Hoje é o dia da mudança. E isso significa o controle administrativo e procedimental das ações de polícia, que é o exercício do poder coercitivo, seja da guarda municipal de esquina ou da Polícia Federal. Temos que cobrar controle e transparência”, reforça. “Eu não preciso esperar a próxima eleição para governo, presidente, porque enquanto isso vidas são perdidas. E essas vidas são perdidas na periferia, no pobre, preto que mora longe, que são os matáveis. Isso tem a ver com essa precarização dos direitos, precarização da vida. E que na verdade põe todos nós inseguros, solitários, fazendo ‘estamos juntos no coraçãozinho’, mas não expressando ali na esquina a nossa solidariedade por medo. O medo paralisa e não constrói”, conclui.

Confira a entrevista