Em nome da mãe

Atualizado em 1 de outubro de 2011 às 9:58
Grossman como correspondente de guerra

Leio na revista de história da BBC – minha predileta – um artigo que me chama a atenção.  É sobre um escritor soviético que só agora começa a ser reconhecido no Ocidente como deveria, ao lado de nomes como Pasternak e Soljntzein. O artigo é publicado porque uma rádio da BBC vai fazer uma série sobre ele.

Seu nome é Vasily Grossman, judeu nascido na Ucrânia em 1905 e morto da Rússia de Kruschev em 1969, de câncer.

Sua obra prima, que já comprei no iBooks e comecei a ler, é Vida e Morte, que tem sido comparado a Guerra e Paz, de Tolstoi. É o relato, em forma de ficção, da guerra entre soviéticos e alemães no começo dos anos 1940. Grossman estava no front, na antiga Estalingrado, atual Volvogrado, como correspondente de guerra de um jornal russo chamado Estrela Vermelha. (Uma antologia de seus textos foi lançada no Brasil pela Objetiva: Diários de Guerra.) Seus artigos, centrados nos jovens anônimos que estavam morrendo e matando, eram acompanhados avidamente na Rússia.

O reconhecimento tardio de Grossman se explica nos horrores da ditadura comunista na Rússia.

O manuscrito de Vida e Morte foi confiscado pelas autoridades soviéticas por acharem que não era boa a imagem do país que emanava do romance. Grossman começou a morrer aí. Ele dizia que seu livro tinha sido “preso”. Amigos contam que a asma voltou, o cabelo embranqueceu, um começo de calvície surgiu. Em pouco tempo Grossman estava morto. Antes disso, teve que ouvir de um líder comunista que seu livro só poderia ser publicado dali a “dois ou três séculos”. Uma reflexão sua ilustra a Frase do Dia do DCM: “A história da humanidade não é a batalha do bem contra o mal. É a batalha do grande mal para esmagar o pouco que existe de ternura humana.”

Na Rússia soviética, Grossman desapareceu como escritor. A ponto de não darem a ele o crédito de uma frase que está num muro que leva ao mausoléu do soldado morto na antiga Estalingrado, extraída dos Diários da Guerra. Um soldado alemão pergunta: “Eles estão atacando de novo. Será que são imortais?” A resposta de um soldado soviético, no muro, está gravada em ouro: “Éramos  na verdade mortais, e poucos de nós sobrevivemos, mas todos cumprimos nosso dever patriótico perante a sagrada Mãe Rússia.” Ainda hoje, guias do mausoléu dizem que não se sabe de quem é esta frase.

Grossman escreveu o livro como para se redimir do que fez, ou não fez, com sua mãe. Os alemães se aproximavam da cidadezinha em que ela morava. Grossman quis tirá-la de lá e levá-la para Moscou, mas sua mulher alegou que não havia espaço. Ela foi morta.

Grossman jamais se perdoou, e nem à sua mulher. “Penso … muitas, muitas vezes sobre como você morreu”, escreveu ele sobre a mãe. “Penso no carrasco. Foi a última pessoa que viu você viva. Sei que seu pensamento esteve o tempo todo em mim.”

A maternidade era caríssima a ele. Uma cena sublime de Vida e Destino mostra uma médica de meia idade, Sofia, sem filhos, a caminho da morte por gás num campo de concentração. Ela estava com um garotinho, David, com um corpo de “passarinho”. Na fila para a execução, os carrascos avisaram que médicos e enfermeiras estavam salvos. Sofia optou por seguir com David para a morte. O garoto morreu antes dela, em seus braços. “Agora finalmente sou mãe”, pensa Sofia.

É uma pena, uma imensa pena, que até agora nenhuma editora brasileira tenha incluído Vida e Destino em seu catálogo.

Grossman dedicou o romance à mãe, em nome da qual ele decidira ir para a guerra, mesmo sem jamais ter segurado uma arma. Suas limitações físicas e seu talento literário acabaram dando a ele o lugar certo: o de correspondente. “Enquanto eu viver, você viverá em mim. E depois, quando eu estiver morto, você vai viver no meu livro.”

Em sua carteira, foi encontrada uma foto em que ele aparecia com a mãe, na infância.

Em memória de minha mãe, que viverá em mim enquanto eu for vivo.