Em nome de Deus, grupo religioso contra o aborto constrange, oprime e vira caso de polícia. Por Beatriz Danielle

Atualizado em 3 de novembro de 2019 às 16:29

Em tese, orações constantes e uma manifestação completamente legal em frente a um estabelecimento. Na prática, assédio e constrangimentos gratuitos direcionados a pessoas que estão apenas em busca de um auxílio médico. É o que tem acontecido na frente do Hospital Pérola Byington, localizado na Bela Vista.

O estabelecimento em questão é referência nacional em atendimento a mulheres e atraiu os manifestantes por realizar abortos em casos cobertos pela lei. Por conta disso, o grupo de católicos fervorosos escolheu o local, colocando em prática um protesto originalmente estadunidense de rezas contra o procedimento, mesmo em situações permitidas.

Há 15 anos, o 40 Days For Life surgia no Texas com o intuito de fechar instituições legais por meio de manifestações religiosas. No Brasil, o movimento não teve resultados positivos em nenhum dos três anos em que aconteceu. Pelo contrário, o grupo, liderado pela católica Celeste, foi denunciado constantemente nos últimos dias por constranger e assediar pacientes do hospital.

Na última quinta-feira (31), a Tradição, Família e Prosperidade (TFP) se juntou a outras correntes católicas e, juntos, tocaram gaita de fole e estenderam cartazes que incitavam produção de barulhos, como um que dizia “Cruzada pela Família, buzine contra o aborto”. No entanto, Artigo 16 da Lei 1916/67 prevê que “permanentemente para o caso de hospitais e sanatórios, ficam proibidos ruídos, barulhos e rumores”.

Eles não dão entrevista, só rezam.

Essa não foi a única ação criminosa cometida pelo 40 Dias Pela Vida no último mês. Na tarde do dia 21 de outubro, uma paciente do hospital foi agredida pelo grupo por revidar gritos. Identificada com J., a mulher estava frequentando o Pérola há 20 dias em busca de auxílio especializado devido a um estupro que sofreu em setembro.

Essa situação foi o estopim para a moradora da região Daniela Neves, que organizou no sábado (23) um movimento em resposta às atitudes dos católicos. “Já que nem a prefeitura nem o governo não fazem nada, mesmo com tanta denúncia, eu acho que, como cidadão, a gente tem que fazer essa vigilância”, comenta.

Com uma tenda doada, o grupo, que não tem nenhuma autodenominação, tem ocupado a praça a poucos metros da barraca religiosa e pretende permanecer até que o 40 dias acabe. Daniela disse que a vigília contém possíveis manifestações mais agressivas do outro grupo, funcionando como um embate “corpo a corpo”.

Segundo policiais, nos últimos dias foram registradas notificações todos os dias, às vezes mais de uma por dia. A organizadora afirma que “eles são tão doidos, tão nocivos” que até a própria PM-SP se posiciona a favor da vigília: “pela primeira vez na vida, eu tenho a polícia do meu lado”.

A barraca para evitar o assédio

Daniela e os outros manifestantes penduraram por toda barraca frases de apoio, como “mulheres, estamos com vocês” ou “uma vítima de violência sexual não deve ser constrangida por nenhuma religião”. A vigília foi inicialmente composta por moradores e agora conta com ativistas e pedestres que passam pelo local e simpatizam com a manifestação. Uma dessas pessoas é a X.

X. não quer ser identificada, mas se posiciona fortemente contra o protesto religioso. Vítima de um estupro e ex-paciente do Pérola, ela entende que a pauta discutida “transcende uma questão religiosa” e acredita que “o que eles querem é retornar a gente àquele lugar de poderem fazer o que quiserem com a gente, inclusive matar, inclusive gestar um feto resultante de uma violência”.

Quando passou pela tenda do outro grupo, X. foi chamada de “assassina de criancinhas”. Esse discurso não é isolado. Ao mesmo tempo que algumas pessoas passam pela barraca de apoio às mulheres e se familiarizam, outras praguejam — “tem que matar todas que abortam”. “Quando as pessoas vão ver que o microfascismo acontece nas ruas, está avançando e rápido?”, a manifestante questiona.

Ao buscar a versão do 40 Dias Pela Vida, encontrei um empecilho. O grupo de fanáticos respondeu que não conversa com ninguém, apenas reza. Enquanto isso, a líder da tenda tirava fotos de mim e notificava os outros integrantes para que fizessem o mesmo. Segundo a vigília, essa atitude é comum entre eles e é feita com o intuito de intimidar qualquer um que esteja lá contra seus valores.

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PS: Ninguém pode ser contra oração, mas, se esse grupo que se diz cristão lesse o livro em que diz acreditar, veriam o que Cristo disse sobre a reza. Está no capítulo 6 do livro de Mateus, versículos 5 e 6:

“E quando vocês orarem, não sejam como os hipócritas. Eles gostam de ficar orando em pé nas sinagogas e nas esquinas, a fim de serem vistos pelos outros. Eu lhes asseguro que eles já receberam sua plena recompensa.
Mas, quando você orar, vá para seu quarto, feche a porta e ore a seu Pai, que está no secreto. Então seu Pai, que vê no secreto, o recompensará.”

O que essas pessoas fazem é uma ação política, própria do fascismo, que não respeita o direito alheio.