“Embaixada” do reverendo Amilton, que negociou vacinas em nome do governo, foi inaugurada com homenagens a Bolsonaro

Atualizado em 3 de agosto de 2021 às 13:28

Publicado na Agência Pública

Artista pintou retratos do reverendo e do presidente Jair Bolsonaro, que foram colocadas em exposição no hall da embaixada

Por Alice Maciel Bruno Fonseca

A presença do presidente Jair Bolsonaro era a promessa mais grandiosa para a inauguração da Embaixada Humanitária pela Paz, na manhã do dia 24 de outubro de 2019. Apesar do compromisso nunca ter constado na agenda oficial da presidência, o anfitrião da festa, o reverendo Amilton Gomes de Paula, informou a alguns presentes que a ida era certa, conforme apurou a Agência Pública com pessoas que participaram do evento. No entanto, uma viagem de última hora teria atrapalhado os planos do religioso de receber o comandante da nação, ao menos segundo o que foi dito a alguns convidados. Dias antes, Bolsonaro havia partido para o exterior, numa viagem oficial que chegaria à China e ao Japão.

A ausência do presidente da República, apesar de lamentada, não impediu que Amilton conseguisse reunir, a portas fechadas, um grupo de empresários e políticos com influência no Distrito Federal. Em uma sala espaçosa e regada a salgadinhos, o grupo de homens teria discutido projetos e parcerias entre o poder público, empresas privadas e organizações não governamentais, um feito alcançado graças à capacidade de intermediação do reverendo. E foi justamente esta habilidade do religioso de mediar interesses que, em 2021, alçaria Amilton Gomes nacionalmente: reportagens revelaram que ele atuou para reunir no Ministério da Saúde suspeitos representantes da Davati Medical Supply, em uma negociata paralela de vacinas.

Na expectativa de receber Jair Bolsonaro na inauguração da embaixada, o reverendo organizou uma exposição com a pintura do rosto do presidente ao lado da sua, num dos amplos halls de paredes brancas. O local, a partir daquele dia, serviria de sede para a sua organização, também conhecida como Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários — a Senah. Os retratos são assinados pela artista plástica Ray di Castro. Ao justificar sua obra, ela disse que “o presidente Bolsonaro está apoiando totalmente [o projeto da Embaixada Mundial pela Paz]”.

A homenagem a Bolsonaro não se deteve apenas às pinturas. Uma das mais contundentes veio na fala do deputado distrital Iolando Almeida, militar reformado da Força Aérea Brasileira (FAB) eleito pelo Partido Social Cristão (PSC) no Distrito Federal. “Quero parabenizar a iniciativa do nosso presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, pelo compromisso em proclamar a paz em toda a esfera nacional”, disse ao abrir as falas das muitas figuras políticas agraciadas no evento com o diploma de “embaixador da paz”, uma honraria sem valor oficial concedida pelo reverendo.

Além do deputado cristão, outras figuras políticas e religiosas discursaram a favor do projeto de Amilton. O secretário de Ciência e Tecnologia do Distrito Federal, Gilvan Máximo, afirmou que “o governo do DF estará apoiando incondicionalmente a Secretaria Nacional de Assuntos Religiosos”. Ele foi seguido pelo embaixador de Israel no Brasil, Yossi Shelley, e depois, por Ney Robson, então administrador regional do município de Águas Claras, igualmente em falas que parabenizaram a Senah e apoiaram, genericamente, a paz mundial.

Evento de inauguração da embaixada contou com políticos como o administrador de Águas Claras, Ney Robson, o embaixador de Israel no Brasil, Yossi Shelley, e o secretário de Ciência e Tecnologia do Distrito Federal, Gilvan Máximo

Ao menos pela cerimônia, que contou com coral juvenil das Forças Armadas e muitas menções à Israel, tudo parecia certo para que o prédio em Águas Claras, cidade satélite de Brasília, funcionasse anos a fio como a sede da aparentemente renomada Senah — em um vídeo institucional, a organização é apresentada como o maior projeto de humanização do mundo. Contudo, o destino do local foi bastante diferente.

Inaugurada com pompa, embaixada está vazia, recebeu festa e tem relações com programa do governo do DF

Neste mês de julho, menos de dois anos após a inauguração, a Pública foi até o imóvel  — registrado como sede da Senah na Receita Federal — e encontrou portas fechadas, sem nenhuma referência à organização. Em conversa com vizinhos, eles contaram que o prédio “fica sempre fechado”. Uma mulher que mora ao lado disse que, desde a grande festa, ocorreram dois eventos: de uma igreja evangélica e um baile funk.

De fato, no prédio, há uma placa do Madi’s Lounge Club, uma casa noturna que realizou sua festa de inauguração em dezembro do ano passado. O evento teve ao menos cinco DJs e ingressos vendidos online por R$ 20 a R$ 50 reais. A reportagem retornou hoje (02/08) ao local e um homem que arrumava o jardim da frente afirmou que estava prestando o serviço para “a nova administração”. Ele contou que havia começado nesta semana o trabalho para a Madi’s e que no espaço “vai funcionar um salão de eventos”.

 

Festa realizada no endereço da Senah reuniu cinco DJs na pandemia

“Na realidade, a Senah nunca funcionou”, disse um ex-funcionário da entidade, o auxiliar de cozinha, Willian Cosme de Sousa. Ele contou que trabalhou, junto a sua mãe, por um mês e quinze dias para o reverendo. Os dois foram contratados para assumir o buffet da “embaixada”, mas cozinharam poucas vezes, antes da inauguração do local, para convidados de Amilton. Eles saíram do emprego, em outubro de 2019, porque não receberam o salário, “só promessas”. Mãe e filho acionaram a Justiça do Trabalho contra a entidade. “O intuito do reverendo era arrumar patrocínio para mobiliar o prédio porque não tinha nada lá”, lembra.

A reportagem tentou diversas vezes falar com o reverendo, enviou para ele os questionamentos pelo whatsapp e para o e-mail da Senah, sem retorno.

Além da casa noturna, o imóvel tem um banner indicando que o local foi contemplado pelo Programa de Apoio ao Empreendimento Produtivo no Distrito Federal (Pró-DF), com nome da empresa favorecida: Clínica de Olhos Anchieta. A empresa é um consultório oftalmológico que presta serviços de saúde a deputados distritais e servidores de órgãos públicos como, por exemplo, a Câmara Legislativa do DF e o Superior Tribunal de Justiça.

O Pró-DF, criado em 2003 pelo governo para motivar empresas a se instalarem no entorno de Brasília com incentivos fiscais e concessão de terreno, foi alvo de escândalos de corrupção e irregularidades. Ele foi substituído, durante a gestão do governador Ibaneis Rocha (MDB), pelo Desenvolve-DF.

A Secretaria de Comunicação do Distrito Federal informou à reportagem que o contrato entre a Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap) e a clínica foi assinado em fevereiro de 2003, mas cancelado 15 anos depois “por divergências quanto ao efetivo exercício da atividade de clínica no imóvel, face a uma solicitação da empresa de alteração de uso para ‘locação de espaço para eventos’”. Segundo a nota, houve recurso contra este cancelamento, que está em fase de análise.

De acordo com a Secretaria de Estado de Empreendedorismo do DF, a clínica solicitou a inclusão de outro CNPJ no endereço, mas como o processo está em análise, não seria possível informar de qual empresa é o registro.

Um dos sócios da Clínica de Olhos Anchieta, o oftalmologista José Tannous, recebeu o diploma de Embaixador da Paz das mãos do reverendo Amilton, no dia da inauguração da embaixada no local.

Parcerias anunciadas pela Senah dizem não ter relação com organização e pedem exclusão de nome

Um papel timbrado com bordas douradas e três logos: do Governo Federal, da Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz Mundial do Congresso (FremhPaz) e da Senah. Assim é o título de “embaixador da paz”, a maior honraria criada e concedida pela organização comandada por Amilton Gomes de Paula e ponto alto da festa de inauguração do prédio em Águas Claras.

A própria embaixada da paz — nome dado pelo o reverendo ao prédio em Águas Claras — confunde-se com uma organização convidada para o evento: a Embaixada da Paz, ONG que atua em projetos sociais e ambientais. A organização é comandada pela atriz Maria Paula Fidalgo, que ficou conhecida por atuar na série de televisão Casseta & Planeta, nas décadas de 1990 e 2000.

Apesar de a atriz estar presente no evento comandado por Amilton Gomes — foi ela quem entregou alguns dos diplomas de embaixadores da paz — a ONG disse à Pública que as relações com a Senah pararam por aí. Segundo a assessoria da organização, não foi estabelecido nenhum contrato ou parceria com o reverendo, e o contato teria se resumido ao evento. A assessoria negou qualquer apoio à Senah e disse desconhecer a atuação da entidade atualmente. A reportagem falou diretamente com Fidalgo, que negou apoio à organização e reforçou desconhecer a atuação da Senah atualmente. Ela ainda lamentou que situações como essa possam prejudicar iniciativas que de fato atuem em causas humanitárias.

A Senah concedeu, por exemplo, o diploma de embaixador da paz a Carlos Alberto Rodrigues Tabanez, candidato suplente a deputado distrital pelo PROS em 2018. Tabanez, que é policial civil, é instrutor de tiro, sócio e vice-presidente do clube de tiro GSI e defende ampliar o acesso à armas de fogo para a população.

O deputado federal Fausto Pinato (PP-SP), presidente da FremPaz  — frente cujo nome consta nos títulos distribuídos pelo reverendo, na placa de inauguração da embaixada e em vídeos da organização nas redes sociais — afirmou à reportagem que a parceria com a Senah “não progrediu”. Amilton Gomes foi um dos fundadores da frente parlamentar, criada em 17 de setembro de 2019. “Sem avanços, não foram realizados cursos, eventos, ou apoio a quaisquer projetos de natureza social ou política”, justificou o deputado. O parlamentar ainda tentou descolar sua imagem do pastor e disse que sua relação com Amilton Gomes “foi apenas institucional”. Ao ser questionado pelo fato de o reverendo usar a logomarca da FremhPaz em vídeos divulgados na internet, Pinato informou “que irá solicitar a retirada destes conteúdos do ar, por uso indevido do nome do colegiado”.

Desconhecer a atuação da Senah foi uma afirmação que ouvimos de várias organizações com as quais Amilton Gomes propagandeava ter parcerias. Antes da apuração da Pública, a entidade divulgava na página principal do seu site a logomarca de diversas organizações parceiras que afirmaram à reportagem nunca terem realizado ações em conjunto com a entidade, ou seu presidente. É o caso, por exemplo, do Conselho Nacional de Justiça (CNPJ) . Ao ser procurado, o CNJ informou “que não tem nenhuma parceria ou relação institucional com a Senah”. “A utilização da logomarca não foi autorizada pelo CNJ e, por isso, foi solicitada, oficialmente, a exclusão da marca do referido site”, acrescentou.

Reação parecida teve a Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-SP ao saber que a Senah divulgava ser parceira da organização. “O Sr. Amilton Gomes de Paula não é membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB SP e nem a mesma não tem qualquer relação de parceria com a SENAH, sendo indevido o uso do logotipo da Comissão, passível até de ação judicial”, ameaçou.