Embalado no discurso de ódio, Doria prometeu e agora não sabe o que fazer com a PM, violenta e insatisfeita

Atualizado em 28 de junho de 2020 às 10:13
Se ilude quem imagina que é possível viver só de marketing (Imagem: reprodução Governo de São Paulo)

Na campanha, embalado pela onda de ódio disseminada pelo fenômeno Bolsonaro, em quem se pendurou para vencer Márcio França (PSB) no segundo turno, João Doria fez duas promessas aos policiais de São Paulo: estariam liberados para ‘atirar para matar’ e iriam conquistar o segundo melhor ‘salário do país’.

A primeira promessa, a despeito de autorizar ou não, a corporação está cumprindo por conta própria.

A segunda ficou na marola, bem ao estilo do marqueteiro que assumiu a prefeitura de São Paulo um ano antes, vestiu um uniforme de gari, fez uma ou outra palhaçada e caiu no mundo para tentar voos mais altos na política – até aqui, a oferta de aumento foi de meros 5%.

Segundo a Folha, a combinação desses dois fatores virou a principal dor de cabeça do gestor, à frente da crise do coronavírus.

Na semana em que o estado de São Paulo bateu recordes consecutivos de mortes por coronavírus registradas em 24 horas, o tema Covid-19 chegou a ficar em segundo plano no Palácio dos Bandeirantes. João Doria (PSDB) e sua equipe foram obrigados a concentrar esforços em outra dor de cabeça que os acompanha desde o início do governo, a Polícia Militar.

Diante de vídeos e denúncias de quase uma dezena de casos de violência policial nos últimos dias, Doria anunciou na segunda (22) um novo programa de treinamento da polícia, criticado por especialistas e que não melhorou, pelo contrário, acirrou a relação conflituosa entre o governador e sua tropa.

“Não há e não haverá nenhuma condescendência com violência policial sob qualquer justificativa. [..] É incompatível com uma polícia bem treinada e bem preparada que uma minoria que representa menos de 1% possa comprometer 99% de uma polícia séria”, afirmou Doria.

A insatisfação com o tucano entre policiais militares é mais disseminada e profunda em comparação a governadores anteriores, de acordo com membros da corporação e especialistas ouvidos pela reportagem.

A hostilidade vem de uma repulsa histórica da tropa ao PSDB, que responsabilizam pelo arrocho salarial, e de uma frustração com as promessas de campanha de Doria, de que a polícia poderia “atirar para matar” e alcançaria o segundo melhor salário do país. Até agora, o aumento oferecido foi de 5%.

Na época, a estratégia de Doria de colocar a segurança pública como vitrine da campanha casava com seu alinhamento ao discurso militar de Jair Bolsonaro (sem partido), em quem pegou carona para se eleger. Agora rompido com o presidente, Doria condenou os excessos policiais, afastou os envolvidos, mas afirmou que são casos isolados na corporação.

O distanciamento entre Doria e Bolsonaro é visto como um fator importante no caldo de animosidade entre o tucano e a PM, dado que parcela expressiva da tropa é alinhada ao bolsonarismo. Policiais dizem que o compromisso do tucano com a classe foi uma jogada de marketing.

Há, porém, outras razões mais pontuais, como o fato de Doria ter xingado policiais aposentados em Taubaté e ter sido grosseiro com um coronel da PM, além da saída de Marcelo Vieira Salles do cargo de comandante-geral após nove jovens morrerem em ação policial em Paraisópolis.

Se, na opinião de especialistas e de membros do comando, a ideologia pró-Bolsonaro e anti-Doria não afeta a atuação da PM em São Paulo, que segue cumprindo ordens do governador, há consequências no campo político-eleitoral, com perdas para o tucano. A politização da polícia, por sua vez, preocupa pesquisadores e o governo.

O governo paulista nega que haja relação ruim entre Doria e a PM e afirma que as reclamações vêm daqueles que querem usar a segurança pública como trampolim político.

Já na opinião de alguns tucanos, Doria se preocupa com o tema da PM e tenta contornar os problemas causados por suas promessas e pelo fato de que ele próprio antecipou o processo eleitoral, se lançando candidato à Presidência em 2022.

O senador Major Olímpio (PSL-SP), policial militar e opositor de Doria, diz que a repulsa da PM dará ao governador menos votos do que os quase 5% que Geraldo Alckmin (PSDB) teve em 2018. (…)

Para o deputado federal Coronel Tadeu (PSL-SP), Doria perdeu a confiança e o voto não só dos policiais paulistas, mas do funcionalismo público do estado e dos policiais militares de outros estados. “Hoje não há menor chance de restabelecer a paz e a amizade com o governador.” (…)

O deputado afirma que, em 2012, 34 policiais se elegeram para vereador, prefeito ou vice no estado. Em 2016, foram 114. A expectativa para 2020 é de 250 eleitos.

“Os policiais estão em contato com a comunidade 24 horas nas 645 cidades. É ruim para o governador ter uma instituição com essa capilaridade e essa projeção política contra ele”, diz.

O professor da FGV e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Rafael Alcadipani contesta a ideia de que policiais pesam no resultado eleitoral, pois não conseguiram impedir sucessivas vitórias do PSDB no governo estadual. Para ele, Doria rifou a PM ao perceber que a onda conservadora e militar que o elegeu em 2018 está perdendo apoio e não vai render votos em 2022.

“A violência policial cai na conta do Bolsonaro. Interessa ao governador essa narrativa de que a PM é violenta e bolsonarista, e de que ele está tentando controlar isso.” (…)

Em relação ao bolsonarismo, Fernanda Cruz, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP, afirma que a questão “fica mais em fake news e memes nas redes de policiais, numa atmosfera simbólica, do que na atuação da tropa”. “Há episódios que sugerem isso, mas não é uma tendência geral da PM”, diz.

A opinião de que a polícia age com profissionalismo é compartilhada por Alcadipani e pelos congressistas policiais —todos fazem a ressalva de que as cenas de violência devem ser punidas com rigor.

O Coronel Glauco Carvalho, ex-comandante do policiamento da capital e doutor em ciência política pela USP, diz que o trabalho policial é árduo e todo o sistema de segurança teria que ser repensado para evitar violência e frear o bolsonarismo.

“A Polícia Militar foi jogada num gueto nesses últimos 30 anos. É vista como a responsável por tudo que ocorre de errado. E a cobrança por todos esses males, especialmente por partidos de esquerda, a jogou nos braços de um governo reacionário, antidemocrático e fascista”, completa. (…)