Emicida está apanhando pelas razões erradas

Atualizado em 24 de agosto de 2013 às 19:36

Acusado de diversos crimes pela música ‘Trepadeira’, o rapper teve de pedir desculpas.

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O rapper Emicida lançou um disco novo. Uma das músicas se chama Trepadeira. Um trecho:

Você era o cravo e ela era a rosa,

e cá entre nós gatinha, quem não fica bravo 

dando sol e água, e vendo brotar erva daninha.

Chamei de banquete era fim de feira,

estendi tapete mas ela é rueira.

Dei todo amor, tratei como flor,

mas no fim era uma trepadeira

Emicida diz ainda que a mulher da canção “merece uma surra de espada de São Jorge”. Foi o bastante para o cantor ser atacado duramente por feministas que o acusaram de misógino, mal amado, machista, cúmplice da violência doméstica. Membros de entidades de defesa de direitos dos negros também não o perdoaram. Emicida estaria reforçando o estigma de que negras são promíscuas.

No Facebook, ele se explicou. “Antes de mais nada, nunca é demais lembrar: estamos falando de uma música, certo? Não quer dizer, obviamente, que represente a minha opinião pessoal sobre as mulheres de forma geral. É uma história ficcional, gente. Um homem apaixonado percebe que está sendo traído por ela quando sai para trabalhar, e a história parte daí, em um trocadilho com vários nomes de plantas ao longo de toda a música. Me sinto um pouco desconfortável neste papel de estar aqui ‘explicando’ poesia, não vejo muito sentido.”

Ainda fez um apelo: “muito respeito a todas as feministas (principalmente as que me xingaram pouco rs)”. Basicamente, exigem que ele se retrato e renegue o que fez.

Não faz sentido exigir de um artista que execute apenas o que você, ou um determinado grupo, considera aceitável. Esse tipo de patrulha trucidou O Sítio do Pica-Pau Amarelo porque Tia Nastácia virou exemplo do racismo de Monteiro Lobato. Esse tipo de patrulha conseguiu, nos Estados Unidos, tirar O Diário de Anne Frank da biblioteca de algumas escolas porque ela fala em masturbação. Qual a diferença entre o pessoal que está linchando Emicida das hostes que o pastor Malafaia está tentando arregimentar para protestar contra uma cena de novela em que um médico evangélico se recusa a realizar um aborto?

Ética e estética são coisas diferentes. O regente Daniel Barenboim, judeu, é um admirador da obra de Richard Wagner, o gênio alemão que era também antissemita. Barenboim sempre foi criticado pesadamente por isso. Chegou a ter de mudar o programa de uma apresentação em Israel por causa de protestos. “Wagner, a pessoa, é absolutamente pavoroso, desprezível e, de certa maneira, é difícil concilia-lo com a música que escreveu, que é o oposto: nobre e generosa”, disse Barenboim. “Sua obra é muito maior do que ele”.

Se julgamentos morais forem levados adiante na música brasileira, sobrarão pouquíssimos autores que não serão acusados de algum crime em suas obras. Quase todo o rap será condenado. Emicida tem razão quando diz que se sente desconfortável no papel de quem está “explicando poesia” e que Trepadeira é uma “história de ficção”. Ele poderia fazer um manual com termos, versos e expressões autorizadas por, digamos, algum coletivo. Provavelmente, muito provavelmente, o resultado não fique bom. Mas, afinal, quem está falando de música, não é mesmo?