Enquanto for lucrativo, elite rejeitará impeachment de Bolsonaro, diz Jessé Souza. Por Fabiana Reinholz

Atualizado em 20 de maio de 2020 às 12:23
Jessé Souza. Foto: Reprodução/YouTube

PUBLICADO NO BRASIL DE FATO

POR FABIANA REINHOLZ

“Eles vivem em um mundo à parte, comandado pelo anti-intelectualismo militante, o qual não envolve apenas uma percepção distorcida do mundo. O idiota é também levado a agir segundo pulsões e afetos que não respeitam o controle da realidade externa. Um idiota de verdade no comando da nação é um preço muito alto até para uma elite e uma classe média sem compromisso com a população, nem com a sociedade como um todo. Esse é o dilema do idiota Jair Bolsonaro no poder”. Assim escreveu o sociólogo Jessé Souza em um artigo recente intitulado O que Significa Bolsonaro no Poder.

Em entrevista ao Brasil de Fato Rio Grande do Sul, o sociólogo fala sobre a atuação de Bolsonaro frente ao isolamento social e a guinada que o país deu em direção ao extremismo político-ideológico. Na avaliação do sociólogo, Bolsonaro nunca guardou segredo de que é um golpista e alguém que despreza a democracia. “Como as suspeitas de falcatruas e assassinatos batem agora à sua porta, fechar o regime é sua única garantia para não ir, junto com seus filhos, para a cadeia”, frisa.

Para Jessé, a saída para o que estamos vivendo passa pelo esclarecimento do povo brasileiro acerca das suas reais condições e acerca de quem o mantém na miséria. Ou, como aponta no final do seu livro A Elite do Atraso, “a esperança de hoje tem que ser uma adaptação contemporânea do velho chamado aos explorados: os feitos de imbecis de todo o país: uni-vos! Recuperemos nossa inteligência, voltemos a praticar a reflexão autônoma que é a chave de tudo que a raça humana produziu de bonito e de distinto na vida da espécie. Afinal, tudo que foi feito por gente também pode ser refeito por gente”.

Doutor em Sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), Jessé Souza é autor de 27 livros, incluindo A Ralé Brasileira: Quem é e como Vive (2009), A Tolice da Inteligência Brasileira (2015), A Radiografia do Golpe (2016) e A Classe Média no Espelho (2019). Presidiu o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) entre 2015 e 2016, onde coordenou pesquisas de amplitude nacional sobre classes e desigualdade social.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato RS: Os discursos do presidente Jair Bolsonaro têm contribuído para o relaxamento do isolamento social. Que impactos isso traz, quando se deprecia a ciência e a saúde?

Jessé Souza: O comportamento do presidente é insano e irresponsável para com seu próprio povo. A agenda de Bolsonaro, de resto, não tem nada a ver com um projeto de nação ou desenvolvimento. Ele está aí como representante de um projeto internacional de saque econômico de países neocolonizados comandado pela extrema direita dos EUA. Este projeto não ataca a esquerda preferencialmente — a não ser no discurso — mas sim o consenso democrático enquanto tal, ou seja, as ideias de direitos individuais e sociais, a defesa do meio ambiente e o debate democrático. Esta é a agenda bolsonarista real. Acrescida, claro, do saque para a elite internacional e nacional do Guedes e da destruição do Estado pela milícia a partir de baixo. Tudo isso garantido pela manipulação do ressentimento dos pobres evangélicos — que não compreendem como são explorados — com o uso de redes sociais também ligadas ao Estado americano.

Pode-se afirmar que esse discurso é todo voltado à questão econômica em detrimento da saúde? O que está por trás desse modus operandi do presidente, na sua visão?

Sim, é a verdade. O que está por trás é um discurso fascista de desprezo pela vida, que passa a ser subordinada ao saque econômico.

Em que ponto o Brasil deu essa guinada tão acentuada a esse extremismo ideológico?

Esta história, como conto no A Elite do Brasil, tem já cem anos entre nós. Sua última aparição se deu com a Lava Jato e com [ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro] Moro. Ou seja, ela tem a ver com a criminalização da política toda vez que ela propõe a dar um pouquinho do orçamento público também para o povo. Toda vez que isso acontece temos um golpe de Estado sob a justificativa fajuta de corrupção e/ou ameaça comunista. Na verdade, a classe média não liga a mínima para a corrupção se ela for da elite como vimos no caso de Aécio e Temer sem nenhuma comoção pública. Como no Brasil, o racismo aberto foi interditado, ele se manifesta mascarando o racismo contra o povo pobre e negro sob a máscara dourada do falso moralismo do combate a corrupção.

Como a Lava Jato levou à criminalização não apenas do PT, mas de todo o sistema político, Bolsonaro, com longa ficha corrida de serviços ao crime organizado miliciano, foi construído pela mídia e pela manipulação profissional das novas redes sociais como o salvador da política corrupta. Uma mentira e uma fraude do começo ao fim.

Que significado tem para a democracia as aparições do presidente nos últimos domingos, em especial nesse que passou (17), incentivando o ataque às instituições e à própria democracia?

Bolsonaro nunca guardou segredo de que é um golpista e alguém que despreza a democracia. Como as suspeitas de falcatruas e assassinatos batem agora à sua porta, fechar o regime é sua única garantia para não ir, junto com seus filhos, para a cadeia. Para a democracia e a sociedade brasileira, Bolsonaro representa o pior momento pelo qual jamais vivemos na história. Nada nem ninguém é ou foi mais destrutivo que Bolsonaro.

Tens falado da invisibilidade do saque da elite ao patrimônio público, ao Estado. Que papel pode ter a imprensa e a intelectualidade de esquerda para superar essa invisibilidade?

A esquerda historicamente pagou um preço altíssimo por compartilhar as ideias conservadoras da “direita chic” que sempre se passou por esquerda entre nós. O falso moralismo do combate à corrupção, supostamente incrustada apenas no Estado, é a ideia política dominante nos últimos cem anos entre nós. Nada se compara a ela em influência por um lado, nem em mentira e fraude por outro lado. É claro que se rouba “também” no Estado, mas sempre os mandantes do roubo são os proprietários da elite.

Criou-se o “bode expiatório” da corrupção política como causa dos problemas nacionais para esconder e tornar invisível o saque legalizado e ilegal da elite. Ciro Gomes foi o primeiro a problematizar o óbvio, hoje em dia admitido até pelo próprio Paulo Guedes: o Brasil é um país de 200 milhões de trouxas explorados por seis bancos. Por trás dos escorchantes ganhos bancários está a elite inteira. Como a grande imprensa pertence, direta ou indiretamente aos mesmos bancos, o trabalho dela é tornar este saque irreconhecível. Criar um “bode expiatório” eterno é a melhor saída.

Até bem pouco tempo, a esquerda caía nesta mesma esparrela o tempo todo. Mesmo quem criticava o saque rentista, como Ciro fez, não vinculava isso ao engodo do falso moralismo. A explicação tem que ser totalizadora para convencer as pessoas. Todo o castelo de cartas tem que cair. Espero que a esquerda aprenda isso algum dia.

A invisibilidade da corrupção no Estado esteve sempre presente de forma muito profunda. Prisioneiros do jogo político para  governar, os governos de Lula e Dilma não incidiram sobre essa questão como deveriam. Como quebrar essa invisibilidade? O Brasil tem maturidade política para transformar essa cultura para uma gestão republicana?

Pois é, eu discordo de você. A corrupção invisível é a do mercado e de seus donos. O problema do PT foi tentar se arranjar com a elite dominante e não ter se importado com o esclarecimento do próprio povo. Confiou no marketing de ocasião. Um projeto míope e pouco inteligente, para dizer o mínimo.

Vários pedidos de impeachment para Bolsonaro já foram protocolados. Mesmo assim, sem vislumbre de que algo ocorra. Por quê?

Porque quem tem o Congresso no bolso é a elite, [é da elite] que estamos falando aqui. E ela está gostando muito de Bolsonaro e de Guedes. O saque à população é feito à luz do dia.

Como o Brasil, vemos vários países à beira do fascismo. O que poderemos imaginar para um mundo pós-pandemia? Que Brasil e que mundo teremos refletido no espelho pós-pandemia?

Não sei, mas acho que será um mundo pior e com mais medo.

Pode-se dizer que Bolsonaro prestou um serviço ao autoconhecimento da nação ao espelhar uma imagem diferente do brasileiro – mesquinho, egoísta, violento, estúpido, racista, misógino, homofóbico – que até então era pouco crível para muita gente?

Não creio. O público de Bolsonaro é de dois tipos: o segmento evangélico do pobre remediado que foi oprimido pelas classes do privilégio cultural toda a vida e por isso apoia a cruzada obscurantista contra o conhecimento, a arte e a ciência, como todo ressentido faria; e o segmento mais canalha e odioso de todas as classes sociais. Se estudarmos as classes sociais para além do dado econômico conhecemos muita coisa sobre o comportamento de 80% das pessoas. Mas toda sociedade tem 20% de pessoas excepcionais para o bem, mas também 20% de perversos, covardes, invejosos, ressentidos e cruéis por motivos familiares em todas as classes. Este esgoto social brasileiro está todo com Bolsonaro como nunca esteve com ninguém. A identificação é, portanto, total.

Qual seu sentimento ao ver as imagens das chamadas “carreatas da morte”?

Raiva e impotência.

Há saída para o país? Qual seria?

O esclarecimento do povo brasileiro acerca das suas reais condições e acerca de quem o mantém na miséria.