Entre o fascismo e nós, só há nós. Por Luis Felipe Miguel

Atualizado em 20 de abril de 2018 às 21:39

Publicado originalmente no Blog da Boitempo

POR LUIS FELIPE MIGUEL, cientista político

Cármen Lúcia. Foto: Divulgação/STF

Com o golpe de 2016, as condições da disputa política no Brasil entraram em processo de rápida deterioração. A institucionalidade fundada na Constituição dita “cidadã” opera de maneira cada vez mais precária; suas garantias são cada vez mais incertas. A prisão do ex-presidente Lula, após julgamento de exceção, ao arrepio do texto expresso da própria Carta de 1988 e com inequívoca intenção de influenciar no processo eleitoral, simboliza com precisão a situação em que nos encontramos.

Ao mesmo tempo, a violência política aberta se alastra, seja por meio dos agentes do Estado (como mostra a repressão cada vez mais truculenta às manifestações populares e a perseguição aos movimentos sociais), seja contando com sua complacência. Das tentativas de intimidação à expressão de posições à esquerda em espaços públicos ao brutal assassinato da vereadora Marielle Franco (e de seu motorista Anderson Gomes), passando pelos atentados às caravanas de Lula, são muitos os episódios que revelam essa escalada. Há rincões em que o assassinato político nunca deixou de existir – somos um país em que o latifúndio nunca parou de matar lideranças camponesas, por exemplo. Neles, o golpe agravou o quadro, dada a sensação de “porteiras abertas” que o retrocesso no Brasil gera para os mandantes dos crimes. E, nos lugares em que o conflito político apresentava um verniz mais civilizado, regredimos para patamar inferior.

Dissemina-se, no Brasil, uma forma de macartismo. Não há interdição legal ao pensamento de esquerda, mas fomenta-se um ambiente social em que ele não pode ser manifestado. As instituições que deveriam garantir a liberdade de expressão são omissas, quando não coniventes com os abusos. A resposta padrão à exposição de valores democráticos e progressistas, em muitos ambientes reais e virtuais, é uma saraivada de impropérios e ameaças. Acusada de “desviante”, a produção artística enfrenta a ojeriza de setores organizados e com influência sobre o público. Procuradores e juízes põem em xeque a liberdade acadêmica, às vezes sob o comando do Ministério da Educação, em dobradinha com um pretenso “movimento” voltado a impedir o pensamento crítico nas escolas pela mobilização dos preconceitos dos pais. Espaços da mídia alternativa são estrangulados economicamente e sofrem tentativas de censura judicial. Na mídia corporativa, as vozes dissonantes são silenciadas e ridicularizadas. O espaço do debate público é estreitado quase até desaparecer. O vocabulário se entorta na direção do conservadorismo: temos que enfrentar o fantasma da “doutrinação”, burlar o veto à discussão sobre “gênero”, voltar a estabelecer o valor da igualdade, traçar novamente o sentido dos direitos.

a sua versão mais extremada, as forças que se encontram na ofensiva na disputa política no Brasil de hoje namoram com o fascismo. O dissenso é traição; o adversário precisa ser eliminado. As hierarquias sociais não podem ser desafiadas. Qualquer oposição aos mecanismos de dominação vigentes, qualquer insinuação de ameaça à sua reprodução inalterada, é marcada como “desordem” a ser esmagada. A desordem na família, a desordem no trabalho, a desordem na escola, a desordem na cidade – contra elas, a solução é a imposição da força.

Quem nos protegerá do avanço do fascismo? Certamente não a lei, que vigora de forma tão insuficiente e que se encontra nas mãos de pessoas dispostas a compactuar com esse avanço na medida em que colabore para a promoção de seus próprios interesses. Pensemos nos chefes do poderes da República: Michel Temer, Cármen Lúcia, Rodrigo Maia. Será possível dizer que algum deles possui valores ético-políticos de base, que limitem a amplitude de seu oportunismo? Há em qualquer um deles algum apreço pela liberdade, pela justiça, um sentimento estendido de solidariedade, que os coloque decididamente no lado do antifascismo? Os fatos sugerem uma resposta negativa.

O que nos impede de mergulhar no fascismo é que ainda há, na sociedade, uma oposição que faz com que esse mergulho seja custoso. É só a nossa resistência, a nossa recusa cotidiana a ceder sem luta qualquer palmo das nossas liberdades, que poderá nos defender do fascismo.

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A Boitempo acaba de lançar o novo livro de Luis Felipe Miguel: Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória.

A obra apresenta uma discussão sobre o sentido da democracia e sua relação com os padrões de dominação presentes na sociedade. A ordem democrática liberal não pode ser entendida como a efetiva realização dos valores que promete, pois a igualdade entre os cidadãos, a possibilidade de influenciar as decisões coletivas e a capacidade de desfrutar de direitos são sensíveis às múltiplas assimetrias que vigoram na sociedade. Porém, tampouco pode ser lida segundo a crítica convencional às “liberdades formais” e à “democracia burguesa”, que a apresenta como mera fachada desprovida de qualquer sentido real. Assim, a democracia não é um ponto de chegada, e sim um momento de um conflito que se manifesta como sendo entre aqueles que desejam domá-la, tornando-a compatível com uma reprodução incontestada das assimetrias sociais, e quem, ao contrário, pretende usá-la para aprofundar contradições e avançar no combate às desigualdades. Portanto, o conflito na democracia é um conflito também sobre o sentido da democracia, isto é, sobre quanto ela pode se realizar no mundo real como projeto emancipatório e quanto as instituições vigentes contribuem para promovê-la ou para refreá-la.