Ernesto, o aprendiz de feiticeiro. Por Eugênio Aragão

Atualizado em 10 de setembro de 2020 às 7:41

 

O chanceler Ernesto Araújo ao tomar posse | Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

 

POR EUGÊNIO ARAGÃO

Lembram daquele desenho do filme “Fantasia”, de Walt Disney, com a música “O aprendiz de feiticeiro” de Mussorgsky ao fundo? Mickey faz as vassouras lavarem o piso do castelo, mas, depois, perde o controle sobre elas, que passam a inundar o castelo com o ritmo frenético com que esvaziam baldes mais baldes de água sobre o piso. Pois é… parece nossa política externa sob a batuta do chanceler terraplanista Ernesto Araújo, de certo, inspirada por um charlatão grosseiro da Virgínia e um fritador de hambúrguer que quis ser embaixador em Washington.

O Brasil tradicionalmente adotou política de não alinhamento automático a nenhum dos polos que tensionam o espaço internacional contemporâneo. Somos um país gigante em território e potencial econômico, mas anão em comércio externo e presença militar. Qualquer escolha por um polo nos faria excluir o outro ou os outros, com fatal submissão de nossos interesses ao aliado mais forte escolhido. A relativa neutralidade nos dá margem de negociação com todos e permite a paulatina expansão de nossa esfera de interesses sem esbarrar em nenhum adversário.

Foi assim desde o Barão de Rio Branco. Até com os militares, na ditadura de 1964-1985, nada mudou: chamaram essa política externa de”pragmatismo responsável”, a permitir que o Brasil, mesmo com um governo de direita que caçava comunistas em casa, fosse o primeiro país a reconhecer o governo do MPLA em Angola, apoiado então pela URSS.

Desde Copérnico, a terra é redonda. Mas, muito versado em teorias conspiratórias que pululam na rede mundial de computadores, o charlatão da Virgínia fez ver a Ernesto, o nosso chanceler aprendiz de feiticeiro, que ela é plana. E parece que convenceu o iniciante a fazer tudo diferente em política externa.

O primeiro sacrifício no altar terraplanista foi o princípio da não-ingerência em assuntos domésticos alheios. O Brasil de Ernesto resolveu meter o bedelho nos problemas internos da Venezuela e da Bolívia. Claro, escolheu o pior lado da contenda intramuros. O golpista. No melhor estilo do “macht kaputt was uns kaputt macht”, o lema dos Baader-Meinhof, da Alemanha das décadas de setenta e oitenta do século passado, resolveu mandar às favas os escrúpulos, para apostar na terra arrasada nos países vizinhos – algo que só interessa ao poderoso aliado do norte.

Depois, o Brasil resolveu tomar lado no conflito árabe-israelense. Óbvio. Da pior forma possível. Sem qualquer contrapartida ou vantagem para o País, prometeu transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, reconhecendo esta última como capital do estado de Israel. Causou, com o anúncio, revolta nos parceiros árabes, que mantêm significativo comércio com o Brasil. Israel, de seu lado, pouco pode oferecer ao País em termos de trocas bilaterais. E o pior de tudo: desfazer a promessa ou, mais tarde, devolver a embaixada para Tel Aviv vai ter um custo diplomático colossal nas relações entre os dois países: esse é um passo de dificílimo retorno.

O encomiasmo na relação com os EEUU, até agora, não nos trouxe qualquer ganho. Pelo contrário: só nos expôs ao ridículo perante a comunidade internacional. A pior cena de 2019, entre os inúmeros vexames de Bolsonaro e seu chanceler pateta, foi aquela em que o presidente brasileiro se deu a pachorra esperar quarenta minutos nos bastidores da Assembleia Geral da ONU, para poder cumprimentar Donald Trump. Este, ao chegar, só lhe deu a mão furtivamente para tirar uma foto e ouvir de um meloso Bolsonaro “I love you”. Mais ridículo impossível. Dá vergonha só de contar.

E, agora, que o amante do norte resolveu assassinar, por ordem do próprio Donald Trump, o comandante da Força Quds, a Guarda Revolucionária iraniana, Qasem Soleimani, como ficará nossa diplomacia terraplanista? Parece que abster-se no conflito será nada provável, diante do esforço permanente de Bolsonaro de untar, com sua presidencial saliva, as gônadas do chefe de estado norte-americano! Ocorre que a situação saiu do controle: numa verdadeira sinuca de bico, se o Brasil apoiar a atitude terrorista dos EEUU, atrairá contra si a ira de boa parte do mundo islâmico e comprometerá o mui lucrativo comércio com o Irã; se mostrar solidariedade com a república islâmica, haverá de arcar com sanções norte-americanas e atrair a bronca de Israel e, talvez até, da Arábia Saudita; se ficar calado, contrariando o costume da tagarelice terraplanista, causará desconfiança de ambos os lados. Enfim, as vassouras resolveram inundar o piso do Itamaraty. E Ernesto não saberá fazê-las cessar.

Talvez tardiamente, o episódio ensinará a nosso governo do baixo clero que política internacional não é para amadores. Não basta ter fritado hambúrguer nos esteitis e treinado arranhar inglês no Yázigi para se ombrear com o Barão de Rio Branco. Nem é de bom alvitre ouvir os conselhos raivosos de um charlatão pseudo-filósofo da Virgínia numa hora destas. Só se pode recomendar a Bolsonaro voltar à secular prática diplomática brasileira e ousar mais pragmatismo. Deve ouvir mais os experientes profissionais do MRE, de larga tradição na defesa dos interesses nacionais. E colocar Ernesto no seu lugar: na melhor das hipóteses, senão no Departamento de Escadas e Corredores, o famigerado DEC dos diplomatas no ostracismo, uma embaixada do chamado circuito Indiana Jones, para aprender como se comportar e agir com responsabilidade em momentos de crise.

O Brasil agradece.