
Advogados criticaram a direção de sua entidade de classe, a OAB, por defender investigação sobre as mortes em Paraisópolis, o que revela uma patologia social que o jurista Pedro Serrano, professor da PUC de São Paulo, investiga já há algum tempo: o autoritarismo líquido.
O que é isso?
“Vivemos hoje uma época em que o autoritarismo não se dá na forma de um ditador personificado, como no nazismo, mas de uma forma líquida, mais difícil de se perceber, já que medidas de exceção são tomadas em determinados momentos e espaços, e depois se desfazem”, explica, em entrevista ao DCM.
“É um autoritarismo no seio da democracia”, acrescenta. E não é exclusividade do governo. Antes, o governo é o espelho dessa sociedade autoritária.”
É o que explica a a defesa ou a relativização que os advogados fizeram da violência policial que deixou nove mortos em Paraisópolis.
A nota da OAB cobra “prioridade máxima das instituições competentes no Governo do Estado, para que apurem com rigor os acontecimentos em Paraisópolis”.
É uma manifestação coerente com o papel da Ordem num país que, constitucionalmente, se define como estado democrático de direito.
Coerente também para uma instituição que teve papel fundamental no enfrentamento da ditadura militar, que denunciava a tortura e defendia presos políticos.
Mas, como se viu na reação a essa nota, tem advogado que entende que a OAB deveria ter outras prioridades, e não a defesa do mais fraco.
No Instagram, onde a nota foi publicada, o primeiro advogado a comentar culpou os organizadores do baile funk:
“Os organizadores descumpriram normas de segurança, eles tinham alvará pra uma festa deste porte? Devem ser responsabilizados”,
Logo em seguida, outra advogada emendou:
“Pancadão com a presença de menores, regado a drogas e sexo, já é uma tragédia!”. E o que dizer da Peruada, a conhecida festa dos estudantes de direito da USP?
Quem já participou ou viu uma dessas festas sabe que ali tem droga e sexo.
A polícia, por acaso, daria tiros com bala de borracha ou jogaria bomba para dispersar uma Peruada, que fecha ruas do centro?
Claro que não.
Outra advogada criticou:
“E por que a OAB não pede justiça aos policiais mortos por bandidos? Exijo criteriosa investigação!”
Um advogado deu um jeito de incluir na seção de comentários o tema da corrupção.
“Perde (a OAB) uma grande oportunidade de justificar seu papel social, ao se omitir diante das mais diversas notícias de atos de corrupção praticados por nossos políticos, crimes estes que são muito mais nefastos, cruéis e hediondos, na medida em que vitimizam não só um indivíduo mas toda a sociedade, violando o direito à vida e todos os demais direitos humanos fundamentais dos cidadãos”, opinou.
Exigir apuração de possíveis crimes cometidas por policiais em Paraisópolis e defender o combate à corrupção não são medidas excludentes.
Mas, ao misturá-los, o advogado demonstra que está incomodado é com a defesa que a OAB faz das vítimas pobres da truculência policial.
Não fosse assim, ele teria pedido uma campanha contra a violência policial quando a OAB, em 2016, iniciou a campanha “Não à corrupção”. Na época, só houve aplausos.
“Nunca vi a OAB se pronunciar com tanto empenho para investigar mortes de policiais! A polícia DEVE fazer o seu trabalho! Mas aqui a polícia está sempre errada. Vergonha desse país!”, comentou outra.
Se, entre os advogados — categoria cujo juramento inclui a defesa dos direitos humanos —,há um apoio velado à ação violenta da polícia, o que dirá fora do universo do direito.
No domingo, torcedores do Palmeiras expulsaram do Allianz Parque um idoso pelo simples fato de que ele lia um livro enquanto os demais torcedores cantavam o hino do clube.
Não incomodava ninguém, mas esses torcedores queriam que ele prestasse atenção na partida.
No mesmo jogo — contra o Flamengo —, dois outros torcedores foram expulsos da arquibancada porque não demonstravam empolgação e também porque não vestiam a camiseta do clube.
São exemplos de autoritarismo, do mesmo tipo que está presente na manifestação de advogados que defendem a atuação policial na favela.
Não veem a nação como um espaço de direitos, e perderam a capacidade de se indignar diante do abuso.
Por visão distorcida pelo ódio, mortos são a consequência natural da política implementada pelos governantes que apoiam.
“Essas pessoas não têm na memória o horror que foi o nazismo e o fascismo, e apoiam governantes que, eleitos democraticamente, flertam com a política que pode levar à repetição da tragédia”, afirma Pedro Serrano.
