Escola pública no Quênia é modelo de superação contra sistema de ensino falho. Por Fernanda Kiehl

Atualizado em 31 de dezembro de 2015 às 18:43
Alunos do colégio público Kyamulendu, no Quênia
Alunos do colégio público Kyamulendu, no Quênia

No tempo em que morou no Quênia, a jornalista Fernanda Kiehl (responsável pelo site Monday Feelings) entrou em contato com uma escola em Tala, no interior do país, que, trabalhando principalmente com medidas que envolvem sustentabilidade, empoderamento dos alunos e conscientização das famílias, conseguiu superar as adversidades impostas por um sistema de ensino falho. Sendo o sistema de ensino queniano semelhante ao brasileiro, muitas das mudanças adotadas na escola poderiam facilmente ser reproduzidas no Brasil. As fotos abaixo foram tiradas pelo marido da jornalista, Tiago Ferraro.

O sistema de ensino público queniano apresenta tantas falhas que fica difícil apontar os principais problemas. Com baixos salários a professores – um profissional em início de carreira recebe 16.692 shillings quenianos, equivalente a cerca de 522 reais – e um investimento governamental irrisório nas instalações e materiais para lecionar, as escolas são obrigadas a repassar custos básicos para que as famílias paguem, como por exemplo, a manutenção das carteiras, eletricidade e comida. Ou seja, o colégio público cobra mensalidade e o que era para ser gratuito acaba saindo caro.

O pai de um aluno no ensino primário público no Condado de Machakos – uma das áreas que apresenta maior crescimento econômico no Quênia, com população de 1 milhão de habitantes – tem de pagar em média 2.500 shillings quenianos (79 reais) para ingressar em uma escola pela primeira vez. A quantia é referente ao registro, custo dos livros, exames, sem contar em outras taxas durante o ano. O valor pode parecer baixo, mas se considerar o salário mínimo local, em torno de 5.000 shillings quenianos (158 reais), e o índice de pobreza que atinge 42% da população, percebe-se o porquê de muitas crianças estarem fora das escolas. Segundo dados de uma pesquisa feita pela Unicef em 2012, 85% dos jovens quenianos estão no ensino primário e o número cai para 75% quando se trata do ensino médio. Os privilegiados em frequentar as salas de aula enfrentam diversas dificuldades, como instalações decadentes, falta de material, professores despreparados e desmotivados, salas superlotadas, sem contar a falta de incentivo da própria família.

O governo não recomenda a reprovação de estudantes e é normal encontrar jovens de 13 anos no standard 5 (equivalente a 5ª série no Brasil) analfabetos. Um estudo conduzido em 2009 pela Uwezo Kenya, uma iniciativa que trabalha para melhorar a qualidade do ensino no leste africano, mostrou que 23% das crianças de 5ª série em áreas rurais do Quênia não sabem ler. Muitos desses alunos estão fadados ao fracasso. Isso porque quando ingressam no standard 8 (equivalente a 9ª série) todos são obrigados a prestar o KCPE, Certificado Queniano de Educação Primária em tradução livre, um exame que irá qualificá-los ou excluí-los do ensino médio. Por conta deste e de outros testes durante a vida acadêmica, o ensino queniano é muito focado no desempenho em provas e notas, deixando diferentes talentos, que poderiam ser trabalhados em atividades paralelas, fora da grade escolar.

Diante de tantas dificuldades, o colégio público Kyamulendu, localizado em Tala, cidade a 56 km da capital queniana Nairóbi e que faz parte do Condado de Machakos, parece ter descoberto uma fórmula para contornar as adversidades. Com medidas inovadoras que envolvem união, sustentabilidade, empoderamento dos alunos e conscientização das famílias, está transformando toda uma geração.

Há dois anos, Winfred Mbinya Sila, de 48 anos, assumiu o cargo de diretora de Kyamulendu. Winie, como é conhecida na região, passou seus primeiros meses observando o comportamento de alunos e professores para perceber uma desmotivação generalizada. Como primeira medida na nova posição, realocou os professores que já davam aula há muito tempo aos alunos das primeira, segunda e terceira séries para salas mais avançadas. “As primeiras séries são a base da escola. É importante que tenhamos pessoas com energia, paciência e compreensão para lidar com crianças que estão ingressando numa escola pela primeira vez na vida”, explica Winie. “Tentei mudar os professores com mais tempo de casa para as salas 5, 6, 7 ou 8, porque esses alunos já estão mais acostumados ao ritmo acadêmico. Evitei a 4ª série também, por se tratar de um ano chave na evolução das crianças, um período em que elas passam por grande transformação”.

Os professores e funcionários da escola
Os professores e funcionários da escola

Winie também empenhou-se em aproximar-se de seus funcionários e tentar motivá-los. Ela descobriu que muitos de seus professores tinham segundo emprego e chegavam ao colégio esgotados. Foi assim que teve a ideia de reunir-se com familiares dos alunos para propor que cada estudante pagasse uma taxa de motivação mensal no valor de 100 shillings quenianos (3,50 reais), esse dinheiro seria repassado integralmente ao lecionador, que poderia então se dedicar por inteiro à atividade acadêmica.

Em geral, as aulas no Quênia começam às 8 da manhã e terminam entre 3 e 5 da tarde. O governo não subsidia a comida e muitos alunos passam o dia de estômago vazio. Professores e pais se organizaram para eles mesmos trazerem ingredientes de casa e as refeições serem preparados para todos na escola. “Cada um traz o que pode e os pais que não têm condições de arcar com esse custo são absorvidos por outros que trazem um pouco a mais. Dessa forma, tanto pais quanto alunos se sentem queridos e amados. Muitos alunos, inclusive, começaram a vir pela comida, já que não têm em casa”, conta Winie.

"Professores e pais se organizaram para eles mesmos trazerem ingredientes de casa e as refeições serem preparados para todos na escola. “Cada um traz o que pode e os pais que não têm condições de arcar com esse custo são absorvidos por outros que trazem um pouco a mais".
“Professores e pais se organizaram para eles mesmos trazerem ingredientes de casa e as refeições serem preparados para todos na escola. “Cada um traz o que pode e os pais que não têm condições de arcar com esse custo são absorvidos por outros que trazem um pouco a mais”.

A intenção da diretora desde o início era fazer com que todos apreciassem e se sentissem parte da escola, para que trabalhassem juntos para um mesmo objetivo. E foi assim que resolveu que seu próximo passo seria transformar o espaço em um ambiente mais acolhedor, atraente e sustentável. Colocou em prática o Educational for Sustainable Development (Educação para o Desenvolvimento Sustentável), técnica que aprendeu durante um mês de curso em Israel. “Visitar Israel foi muito impactante para mim e um ponto crucial na minha carreira. Me fez pensar: que tipo de educação estamos dando às nossas crianças? O ensino no Quênia é muito voltado às notas… Eu não quero educação para o papel, eu quero educação para a vida.” Winie plantou flores pelo local, pintou as paredes com temas educativos e frases positivas e desenvolveu uma grande horta onde antes havia um terreno em desuso. Em Tala, praticamente todas as famílias sobrevivem da agricultura familiar e não foi difícil convencer as pessoas a embarcar no projeto. Inclusive Sila, seu marido e agrônomo, doou 150 mudas de banana.

A horta se tornou parte da grade escolar e responsabilidade integral dos alunos, que cavaram os buracos, adubaram e plantaram. “Nós queríamos que eles se sentissem precursores da mudança. Colocamos os nomes de cada aluno envolvido em uma muda e eles se encarregaram de regar todos os dias sua planta. Após oito meses, começou a dar frutos e isso teve um impacto muito positivo. Eles não podiam acreditar que a bananeira tinha crescido! Os alunos não faltavam mais à escola, porque queriam ver o progresso!”, se empolga Monica Mussioka, professora de ciências.

A horta, cuidada pelos próprios alunos
A horta, pela qual os próprios alunos são responsáveis

O colégio entrou em contato com o Giraffe Centre, uma organização que protege animais em extinção e promove a educação através de práticas sustentáveis, para contar sobre o sucesso do projeto. O pessoal do centro foi visitá-los, gostou do que viu e ao final firmou uma parceria com Kyamulendu: doaram mudas de diversas plantas, mais 70.000 shillings (2.200 reais) e promoveram um ecotour para 48 estudantes e professores. “Elegemos para a excursão os responsáveis pela horta e os melhores alunos de cada sala, afinal não podemos desvalorizar a educação”, diz Winie.

Todo o dinheiro doado foi investido na horta e a dedicação de todos só aumentou. “Acredita que eu tinha que ir buscar os alunos em casa de carro, porque eles estavam coletando tanto esterco nas ruas para utilizarmos como adubo que não aguentavam trazer a pé?!”, ri ela.

Durante o ecotour, viram pela primeira vez uma máquina que transforma lixo orgânico em carvão e, ao retornarem do passeio, conseguiram construir de forma rústica o aparato. Mais uma vez, são os alunos os responsáveis pela aplicação e manejo do maquinário e as técnicas aprendidas na escola são reproduzidas em casa, aumentando a produtividade e a renda familiar.

As bananas, abóboras, abacates, ararutas, entre outros, além do carvão, são utilizados na escola ou vendidos no mercado central e o dinheiro mantido pelos tesoureiros da escola. Kyamulendu possui prefeitos de classe, ministro da agricultura, tesoureiros, responsáveis pela horta e etc; são todos alunos votados pelos próprios alunos. “Eles se conhecem melhor do que nós, nada mais justo do que votarem em seus representantes. Eles respeitam seus líderes porque foram eles que escolheram”, explica Winie. “Nós os auxiliamos, mas são eles quem decidem em que será investido o dinheiro, afinal de contas, a plantação é deles”.

No momento, o dinheiro é utilizado para organizar excursões, pagar as taxas de alunos que estão passando por dificuldades financeiras e, mais recentemente, na construção de uma instalação para secar bananas. Já que todos na região fornecem a fruta, os professores tiveram uma ideia para transformar um produto de alta oferta em algo diferenciado. “Queremos ensinar os alunos a ter uma mentalidade inovadora e a pensar como empreendedores. Em pouco tempo poderemos vender farinha e crisp de banana a um preço mais alto”, conta Winie. Pouco a pouco, ou pole pole, como falam na língua nacional, o swahili, o projeto vai se tornando mais sustentável e viável.

Ainda assim, a diretora tinha de lidar com estudantes desmotivados em razão de problemas em casa: “As famílias daqui fazem empréstimo no banco e, sem nenhum tipo de consultoria administrativa, acabam tendo seus pertences levados por falta de pagamento. Eu vi isso acontecendo nas casas de muitos alunos, e com alguns pais se tornando inclusive violentos, isso estava afetando-os em classe”.

Foi pensando em amenizar esse problema que a escola entrou em contato com o Equity Bank para propor ao banco que organizassem workshops e aulas de administração e finanças aos familiares. Além disso, os parentes eram incentivados a abrir poupanças para os filhos, para que tivessem algum tipo de segurança em pagar estudos no futuro.

Diante de tanta inovação, mudanças e ideias, Kyamulendu aumentou em 50 pontos seu desempenho no KCPE. Quando Winie ocupou o cargo de diretora em 2013, a média era de 250 pontos (sendo 1 o mais baixo e 500 o mais alto), um ano e meio depois, o colégio obteve 300 pontos no exame.

No final do ano passado, no entanto, mais uma mudança foi estabelecida na escola que promete aumentar a performance dos estudantes. Kyamulendu conseguiu tornar-se o único colégio no distrito de Machakos a beneficiar-se de uma nova iniciativa do governo chamada National Leaders Programme. Nesse programa lançado pelo Ministério da Educação, Ciência e Tecnologia queniano, jovens recém-graduados em diferentes campos, são treinados e enviados para voluntariar em escolas públicas de todo o país. O National Leader Programme está embasado em três fundamentos: fortalecer o nível da educação primária por meio de reforço em leitura e matemática; criar oportunidade de trabalho para jovens recém-graduados; e promover coesão nacional através do envio de voluntários para viver e trabalhar em áreas distintas das suas.

Foi assim que Caroline Mutegi, 28 anos, e Morris Kimathi, 26, ambos da tribo Meru, foram parar em Tala, cidade de maioria tribal Kamba (o Quênia é formado por mais de 40 tribos). “Quando descobri que teria de morar com uma família que não conhecia, quase desisti. O fato da população aqui ser Kamba também me deixou receoso. Os Kambas são conhecidos por praticarem magia negra… meus amigos e familiares temiam por mim e não queriam que eu viesse”, conta Morris, que antes de se juntar ao programa trabalhava no Banco Comercial Queniano (KCB – Kenyan Commercial Bank). “Quando cheguei, vi que é muito diferente do que pensava. Eles têm um estilo de vida parecido com o meu e são muito receptivos. É uma cultura interessante”.

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“Eu quero educação para a vida”, disse a diretora do colégio

Os dois voluntários ajudam 20 alunos que não sabem ler nem escrever em sessões de leitura particular diária. “Nós não somos professores treinados, aprendemos com a experiência. As crianças analfabetas são muito inseguras, estamos ajudando a construir sua autoestima”, explica Caroline.

Morris, no entanto, foi além. Ao perceber que muitos alunos gostariam de ter a oportunidade de ser orientados, mas por falta de vagas ficaram de fora, criou o Greatness Mentors Club (O Melhor Clube de Mentores, em tradução livre), um clube que promove a educação holística e tenta explorar talentos ignorados nas crianças. “Essas crianças têm muitas aptidões escondidas. Nem tudo se aprende na sala de aula”, explica Morris.

Os 110 aprendizes participantes do projeto se encontram de duas a três vezes por semana e são treinados em diferentes atividades, desde stand up comedy, música, moda, jornalismo a outras que reforçam a grade escolar como competições de matemática e ciências. “Eu quero inspirá-los a serem criadores de emprego e não candidatos a vagas de trabalho”, se entusiasma Morris.

Em estrutura, a escola primária Kyamulendu não diverge em nada dos outro colégios da região: tem 700 alunos, salas superlotadas (70 crianças em média), não há material suficiente para todos, o chão é de terra batida e os professores mal pagos. Entretanto, ela representa uma esperança e um modelo de sucesso a ser seguido em outros lugares. Não só crianças estão se preparando para uma vida adulta com diferentes aptidões, mas também toda uma comunidade está empenhada em mudar a maneira como se leciona no país.

“Ser professor é um trabalho desafiador, um trabalho que deveria ser visto como voluntário, para ajudar as crianças. Se você levá-lo como carreira, pode arruinar uma geração”, finaliza Winie Mbinya. Mbinya, que segunda a tradição Kamba de dar nomes com significado, quer dizer perseverança. Nada mais apropriado.